Quantcast
Channel: porque de nada sirve escaparse de uno mismo
Viewing all articles
Browse latest Browse all 67

fragmentos de "Comunidades Imaginadas", de Benedict Anderson

$
0
0
O nacionalismo é a patologia da história do desenvolvimento moderno, tão inevitável quanto a neurose no indivíduo, e que guarda muito da mesma ambiguidade de essência, da tendência interna de cair na loucura, enraizada nos dilemas do desamparo imposto à maior parte do mundo (o equivalente do infantilismo para as sociedades), sendo em larga medida incurável.” Tom Nairn (in The Break-up of Britain)



[Sempre me intrigou a persistência das paixões nacionalistas mesmo entre ocidentais altamente escolarizados e cosmopolitas, especialmente entre os que são também eleitores dos partidos de esquerda de inspiração marxista. Vou além: fico estupefato com não haver, à essa altura da história, qualquer desprezo visível e / ou consistente à soberania dos atuais centros administrativos sobre os territórios, tal como demonstram os mapas. Não me refiro às invasões militares com propósito de anexação ou domínio – protagonizadas por Estados, grupos étnicos ou fanáticos religiosos -, mas à assustadora naturalização, por parte de gente tão lúcida em praticamente tudo mais, da arbitrária distribuição de terras entre as diversas instituições que chamamos de Estados ou Nações. Sendo ainda mais simplório: considero o ardor patriótico tão estapafúrdio quanto a fé de que uma dança ritual possa fazer chover, seitas que cometem suicídio para serem acolhidos por naves extraterrestres ou o gosto do carioca por beber cerveja quente em pé, debaixo do sol, durante o Carnaval. Touradas fazem mais sentido pra mim do que gente pintada de verde e amarelo berrando pelas ruas seu amor pelo Brasil.]

Trechos do livro “Comunidades Imaginadas” de Benedict Anderson:

“Imagina-se a nação soberana porque o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo numa fase da história humana em que mesmo os adeptos mais fervorosos de qualquer religião universal se defrontavam inevitavelmente com o pluralismo vivo dessas religiões e com o alomorfismo entre as pretensões ontológicas e a extensão territorial de cada credo, as nações sonham em ser livres – e, quando sob dominação divina, estão diretamente sob Sua égide. A garantia e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano.

E, por último, ela é imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desiqualdade e da exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No fundo, foi essa fraternidade que tornou possível, nestes últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas tenham-se disposto não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações imaginárias limitadas.

Essas mortes nos colocam bruscamente diante do problema central posto pelo nacionalismo: o que faz com que as parcas criações imaginativas da história recente (pouco mais de dois séculos) gerem sacrifícios são descomunais?”

“O significado cultural desses monumentos [ao soldado desconhecido] ficará ainda mais claro se tentarmos imaginar, por exemplo, um túmulo do marxista desconhecido ou um cenotáfio para os liberais tombados em combate. Não seria um absurdo? O marxismo e o liberalismo não se importam muito com a morte e a imortalidade. Se o imaginário nacionalista se importa tanto com elas, isso sugere sua grande afinidade com os imaginários religiosos. Como essa afinidade nada tem de fortuito, talvez valha a pena iniciar uma avaliação das raízes culturais do nacionalismo pela morte, último elemento de uma série de fatalidades.

A maneira de um homem morrer geralmente parece arbitrária, mas sua mortalidade é inevitável. As vidas humanas estão cheias dessas combinações entre o acaso e a necessidade. Todos sabemos que nossa herança genética pessoal, nosso sexo, a época em que vivemos, nossas capacidades físicas, língua materna, e assim por diante, são fatores contingentes e inelutáveis. O grande mérito das concepções religiosas tradicionais (o qual, naturalmente, não deve ser confundido com o papel delas na legitimação de sistemas específicos de dominação e exploração) é a sua preocupação com o homem-no-universo, o homem enquanto espécie e contingência da vida. A extraordinária sobrevivência do budismo, do cristianismo ou do islamismo ao longo de milênios, e em dezenas de formações sociais diferentes, comprova uma capacidade de resposta imaginativa ao tremendo peso do sofrimento humano – a doença, a mutilação, a dor, a velhice, a morte. Por que nasci cego? Por que meu melhor amigo ficou paralítico? Por que a minha irmã é retardada? As religiões tentam explicar.

O grande ponto fraco de todos os estilos de pensamento evolucionários / progressistas, incluindo o marxismo, é que eles respondem a essas perguntas com um silêncio impaciente. Ao mesmo tempo, e de diversas maneiras, o pensamento religioso também dá respostas sobre as obscuras insinuações de imortalidade, geralmente transformando a fatalidade em continuidade (karma, pecado original etc). Assim, a religião se interessa pelos vínculos entre os mortos e os ainda não nascidos, pelo mistério da re-generação.”

“Faço essas observações talvez simplórias principalmente poque o Século XVIII, na Europa Ocidental, marca não só o amanhecer da era do nacionalismo, mas também o anoitecer dos modos de pensamento religiosos. O século do Iluminismo, do secularismo racionalista, trouxe consigo suas próprias trevas modernas. A fé religiosa declinou, mas o sofrimento que ela ajudava a apaziguar não desapareceu. A desintegração do paraíso: nada torna a fatalidade mais arbitrária. O absurdo da salvação: nada torna mais necessário um outro estilo de continuidade. Então foi preciso que houvesse uma transformação secular da fatalidade em continuidade, da contingência em significado. Como veremos, poucas coisas se mostraram (se mostram) mais adequadas a essa finalidade do que a idéia de Nação.”

# # #

“Leu um jornal é como ler um romance cujo autor tenha desistido de qualquer intenção de escrever um enredo coerente.”

“Desse ponto de vista, o jornal é apenas uma forma extrema do livro, um livro vendido em escala colossal, mas de popularidade efêmera. Será que podemos dizer: best sellers por um dia? Mas a obsolescência do jornal no dia seguinte à sua edição – é curioso que uma das primeiras mercadorias de produção em série já prenunciasse a obsolescência intrínseca dos bens duráveis modernos – cria, e justamente por essa mesma razão, uma extraordinária cerimônia de massa: o consumo (a criação de imagens) quase totalmente simultâneo do jornal-como-ficção. Sabemos que as edições matutinas e vespertinas serão maciçamente consumidas entre esta e aquela hora, apenas neste, e não naquele dia.”

Viewing all articles
Browse latest Browse all 67