“Homens do Amanhã” é dos melhores livros de História que já li, com uma pesquisa incrivelmente bem feita e minuciosa.
Gerard Jones conta como uma turma de judeus pobres recém-chegados nos EUA no início no século XX criou os Quadrinhos de Super-Heróis, a partir da vulgarização do culto à boa forma física (que daria tanto em fisioculturismo como em teorias eugenistas), do entusiasmo com o progresso tecnológico (gerando tanto a ficção científica como o futurismo e outras vanguardas), da expansão do mercado editorial (graças à alfabetização massiva) e às amizades cultivadas nas violentas ruas do Lower East Side: em seus cortiços viveram tanto os gráficos e editores quanto os mafiosos que durante a Lei Seca esconderam uísque no papel que era importado do Canadá e distribuíram garrafas de cerveja junto com revistas para postos de gasolina, farmácias e bancas de jornal.
O livro faz a ponte entre “Gangues de Nova Iorque” de Martin Scorsese (inspirado no livro de Herbert Asbury, de 1928) e a série “Mad Men” de Matthew Weiner. O fio condutor do livro é a tragédia da dupla Jerry Siegel e Joe Shuster, que por acaso são de Cleveland, mas quase toda a ação se passa em Nova Iorque. Ainda muitíssimo violenta, governada por uma sociedade obscura e corrupta chamada Tammany Hall fundada em 1786 e que controlou todos os cargos no governo municipal e na polícia durante quase 100 anos – deixando de existir apenas na década de 60. Enquanto alguns judeus saíam da pobreza através do ramo de vestuário, como de praxe, e se aventuravam na indústria editorial, em parte graças à necessidade de publicações em ídiche para uma imensa população que ainda não dominava o inglês, a cidade instaurava as primeiras leis contra o trabalho infantil e testemunhava sangrentos embates entre sindicalistas – judeus e italianos na sua maioria - e a polícia – praticamente toda de origem irlandesa.
Uma saga protagonizada por muitos personagens misteriosos: gente que queimou seus documentos, escolheu um novo nome, tirou uma biografia da cartola e vendeu seu peixe como pôde, nem sempre legalmente. Uma saga que começa com os jovens de um país emergente, criados num ambiente de escassez e violência, que uns anos depois se tornam patrões de jovens já criados num ambiente burguês e prosaico, que por sua vez farão carreira escrevendo e desenhando fábulas para uma nação já rica, oscilando entre o consumo hedonista e surtos de patrulhamento paranoico e moralista.
Nas décadas de 1910 e 20 o que havia era uma literatura considerada vulgar, derivada de Alexandre Dumas, Rafael Sabatini, Edgar Rice Burroughs e H. G. Wells: Edward Elmer Smith, Philip Wylie e Philip Francis Nowlan continuam esquecidos, mas seus textos eram publicados nas mesmas revistas baratas que publicavam os hoje canônicos Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Horace McCoy. Uma dessas revistas pulps se chamava “Amazing Stories”, e seu título bem poderia ter se inspirado na biografia de seu criador e editor. Hugo Gernsback desembarcou em Manhattan em 1904, com 20 anos, sem falar inglês, trazendo na mala uma bateria elétrica que não havia conseguido patentear em Luxemburgo, seu país natal. Com uma genuína e ardorosa fé na ciência, editou revistas sobre rádio, televisão e saúde, além dos contos fantásticos sobre futuros utópicos, cunhando a expressão “ficção científica” e se tornando o guru da geração que criaria os super-heróis na década de 30.
Jerry Siegel e Joe Shuster criaram o Super-Homem e 1938, mas envelheceram na pobreza até dezembro de 1975, quando conseguiram um acordo com a DC Comics, a empresa dona do personagem, depois de uma longa disputa judicial. São os personagens mais óbvios na história de um meio que levou décadas para ter seu valor artístico reconhecido. Porque, verdade seja dita, esse ambiente de trabalho era de fato bem mais parecido com uma fábrica do que com o ateliê de um pintor.
Apenas algumas semanas depois que Action Comics chegou às bancas Siegel e Shuster já não davam conta dos pedidos e tiveram de contratar assistentes. Will Eisner, o veterano que muito mais tarde inventaria a “graphic novel”, dividia seu escritório com Klaus Nordling, Stanley Pulowski, Chuck Cuidera, Reed Crandall, Chuck Mazoujian, Nick Viscardi, Bobby Fujitani e Tex Blaisdell. Todos nomes que desapareceram da vista até dos fãs mais obcecados. Bob Kane foi dos primeiros criadores a conseguir que seu nome continuasse sendo impresso nos gibis depois de se aposentar, mas o desenhista do Batman nunca se preocupou com os créditos de Bill Finger – o escritor-criador que ficou sem um centavo dos lucros gerados pelo Homem Morcego. Jack Kirby (nascido Jake Kurtzberg) conseguiu, pelo menos junto aos fãs, recuperar os louros que os desavisados julgam ser todos de Stan Lee. Mas a lista de artistas que continuam nas sombras continua extensa: Charlie Biro, George Roussos, Gil Kane, Jack Cole, Mort Meskin, Lou Fine, Shelly Mayer, Gardner Fox, Joe Simon, Jerry Robinson, Sheldon Moldoff, Jim Mooney, Bernard Baily, Bob Wood, Paul Cassidy, Leo Nowawk, Edmond Hamilton, Alfred Bester, Bill Everett, Johnny Craig, Al Feldstein. E anote esse nome, depois dê um google: William Moulton Marston, das figuras mais excêntricas e interessantes desse universo.
Temo ser mal compreendido com a afirmação a seguir, mas creio que, tão importante quanto tirar do anonimato esses escritores e ilustradores, é reconhecer o quão limitada foi a contribuição desses artistas para que certas histórias em quadrinhos se transformassem nessa outra coisa: uma nova mitologia. Aos especialistas provavelmente soará ridículo o uso do termo com base no que foi a mitologia para sociedades antigas, mas posso contra-argumentar que só a invenção de uma nova palavra daria conta de um fenômeno – narrativas fictícias múltiplas e conflitantes sobre um elenco fixo de personagens, constantemente revisadas e despertando inflamados debates entre os leitores a respeito da verossimilhança ou legitimidade de cada uma delas – que não me parece ter melhor correspondência do que na mitologia.
O sucesso do Super-Homem, Batman, Mulher-Maravilha, Homem-Aranha ou Quarteto Fantástico não se deve unicamente às histórias publicadas nas revistas da DC ou da Marvel, considerando que boa parte delas foi de qualidade bastante discutível – mais costumeiramente por culpa de roteiros chinfrins do que de arte preguiçosa. Na verdade é um mistério que tanto material de quinta-categoria, produzido muito mais com base nas metas de faturamento dessas empresas do que em inspiração artística propriamente dita (“Estava escrevendo meu romance, já estava na página 120, mas poxa, pintou uma idéia aqui.... tão boa.... parei tudo e agora vou propor essa historinha ao Stan Lee!”) tenha afinal reservado um lugar cativo no orçamento e na imaginação de tantos leitores, pelos últimos 80 anos, de modo que os bons momentos, ainda que escassos, tenham, pouco a pouco, resultado num acervo realmente excelente e de vulto.
Ao escrever “Homens do Amanhã” Gerard Jones se junto a um pequeno exército de justiceiros do mundo real, como Alan Light, Murray Bishoff, Chuck McCleary, Jerry Robinson, Phil Yeh, John Sherwood, Neal Adams, Denny O´Neil, Norman Mailer, Kurt Vonnegut: fanzineiros, presidentes de fã-clubes, colegas, editores, artistas de outros meios e jornalistas que se sensibilizaram com a pobreza e a humilhação que afligiram Joe Shuster e Jerry Siegel e lutaram, cada um com suas armas, por justiça. Mas mesmo o tom cáustico com que Jones descreve os empresários da indústria dos Quadrinhos como Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, os caras sempre vistos pelos fãs como os gananciosos e impiedosos vilões que fizeram fama e fortuna às custas dos artistas, não nega, e até pelo contrário, evidencia, com nítida admiração, a tenacidade num ambiente econômico hostil, a esperteza para driblar falências e financiarem seus projetos, a criatividade para enfrentar críticas das mais canhestras e moralistas, a resistência frente à censura, daquelas raposas, filhos de imigrantes pobres criados nos mesmos bairros sinistros de ondem saíram os piores gângsters de sua época: tão impiedosos e injustos com seus funcionários, os artistas, mas capazes também de manter de pé um negócio que prosperou durante 40 anos apesar do absoluto desprezo da elite intelectual e da desconfiança, e até ataque, das autoridades.
Bernarr Macfadden e Mort Weisinger são criaturas tão fascinantes quanto assustadoras. Malcolm Wheeler-Nicholson, o mais jovem major da cavalaria norte-americana, lutou contra Pancho Villa no México e contra os bolcheviques na Rússia, serviu em Versailhes em 1919 e foi pra corte marcial por causa de artigos críticos ao exército antes de tornar-se escritor de pulps e, com a Grande Depressão, se arriscar nas tiras para jornais, criando o formato “comics” dos quadrinhos (aqui conhecido como gibi) quase por acidente. A revista Detective Comics foi criação desse mesmo major. Lev Gleason, Lloyd Jacquet, Vin Sullivan, George Delacorte, Frank Armer, Ned Pines, Jerry Iger, Martin Goodman, Victor Fox, Julie Schwarz foram empreendedores (uns mais, outros menos envolvidos na edição) tão destemidos, e eventualmente tão apaixonados pelo que faziam, quanto Harvey Kurtzman, Hugh Hefner e Robert Crumb. A história desses empresários e desses negócios são tão mirabolantes quanto os planos de Lex Luthor para derrotar o Homem de Aço. Charlie Gaines e Bill Gaines, pai e filho, são tão parecidos e tão diferentes, e ambos autores de tantas proezas, quanto Bruce e Damian Wayne.
Os bastidores têm personagens tão ou mais interessantes do que os que habitam Gotham City: Margaret Sanger, por exemplo, foi uma feminista radical que foi presa algumas vezes por divulgar métodos contraceptivos em seu jornal “The Woman Rebel” e “Birth Control Review” – na época distribuídos por Harry Donenfeld, cujas empresas acabam se transformando na DC Comics. E que dizer do contador que acabou por arquitetar uma das maiores fusões da história econômica desse planeta? Jack Liebowitz, tão frio e calculista quanto brilhante homem de negócios, deu provavelmente a maior contribuição individual para que os Quadrinhos de Super-Heróis chegassem tão longe.
Qualquer leitor minimamente atento de “Homens do Amanhã” tem de reconhecer que o plágio foi a ferramenta mais importante dos escritores e ilustradores, que o ritmo de produção exigido pelo boom do marcado já nos anos 40 fez com que a maioria dos artistas trabalhasse sem receber crédito por seus trabalhos, que raríssimos foram os artistas que espontaneamente agradeceram publicamente aos seus assistentes. Pelo menos até o surgimento dos comix nos anos 60 e da geração de Art Spiegelman. Qualquer leitor minimamente atento deve reconhecer que foram as jogadas de marketing dos editores e as trapaças contábeis e financeiras dos empresários que possibilitaram que esses personagens extrapolassem o meio para o qual foram inicialmente criados, que são as revistas em quadrinhos. Sem mais rodeios, ouso chamar de desonesta a tentativa de contar a história dessa arte / indústria como uma história de vítimas (os artistas) e algozes (os editores e empresários). E é por isso que tenho simpatia pela motivação de Alan Moore, mas também muita antipatia pela forma – maniqueísta - como Alan Moore luta pelos direitos autorais dos artistas da velha guarda.
Acho que cresci numa época e/ou ambiente em que a expressão “sonho americano” é usada mais para criticar e ridicularizar do que para elogiar os Estados Unidos.A expressão me soa amarga: parece condensar uma promessa frustrada, quase sempre utilizada por quem está discorrendo sobre os males do capitalismo ou do individualismo. Mas estranho a crítica em tom de comoção (“ah, que pena desses artistas”), quando essa comoção parte da não entrega de um prêmio (fortuna e glória) que o crítico não deveria valorizar, dependendo de sua inspiração. Se a crítica é de inspiração socialista, trata-se da melhor distribuição da renda gerada pelos Quadrinhos, e desse ponto de vista tornar Shuster e Siegel milionários não resolveria muita coisa: considerando quantos escritores e ilustradores se dedicaram ao Super-Homem, durante todas essas décadas. Se a inspiração da crítica é de ordem mais estética, no sentido de dar reconhecimento aos artistas responsáveis por tudo o que o Super-Homem passou a significar, tampouco, pelo mesmo motivo. Em outras palavras: não me sensibilizo com o fracasso de dois jovens em enriquecer ou alcançar a fama porque não acredito que enriquecer ou ser famoso seja uma aspiração nobre. Todos os dias surgem novos medicamentos graças ao esforço monumental de um batalhão de pesquisadores que morrerão anônimos, exceto entre seus pares, e ninguém se descabela por isso.
Chorei em algumas passagens de “Homens do Amanhã”, em especial perto do fim, com as últimas batalhas travadas por Jerry Siegel para ser reconhecido como criador do Super-Homem, voltar a trabalhar com Quadrinhos e obter rendimentos que dessem uma vida minimamente confortável para sua família. Mas não porque o visse como um talento desperdiçado (me parece que ele nunca foi um grande escritor) e nem porque esperava que a DC Comics “levasse o troco” pelo modo como tratou seu ex-funcionário (a volta de Siegel ao Super-Homem nos anos 60 mostra como há muito cinza nessa história), mas porque sua relativa vitória só foi possível graças à solidariedade dos colegas e dos fãs, e a mobilização contada por Gerard Jones nos lembra que ainda há muita gente bacana no mundo, e que com empatia e esforço é possível corrigir grandes cagadas da história.
Comecei a frequentar sebos quando criança, para comprar gibis, e acabei me tornando livreiro e abrindo minha própria livraria. Continuo comprando meia-dúzia de gibis todo mês, e metade, senão mais, da minha biblioteca pessoal deve ser de quadrinhos. Continuo perguntando aos meus amigos o que anda acontecendo com os personagens pelos quais tenho carinho, como os X-Men ou o Arqueiro Verde, mesmo quando não estou lendo as novas aventuras. Continuo me enfurecendo com as versões cinematográficas e passando tardes inteiras discutindo detalhes ridículos com outros fãs.
Me sinto parte de uma comunidade. Para nós não se trata apenas de entretenimento. Assim como os editores e empresários, os fãs também direcionaram o talento dos escritores e ilustradores, os obrigando a transformar vilões em heróis, a dar títulos próprios para figuras que nasceram como coadjuvantes ou a ressuscitar certos personagens. E a indústria cultural de massa pode ter um zilhão de defeitos (como “sugar” seus artistas ou privilegiar quantidade em detrimento da qualidade), mas tem essa linda qualidade: é uma obra coletiva.
Já fiz aulas de desenho, já publiquei zines com roteiros e desenhos meus (tem um, o “Cara de Cão”, que eu acho até bom), já pensei em como seria maravilhoso ter talento suficiente e ter algo meu impresso com o selo Marvel ou DC.
E nesse universo paralelo, em que eu sou roteirista ou desenhista, eu certamente sofro quando sou mal remunerado. Mas também tenho certeza absoluta que nessa Terra-758 eu sou um cara super feliz, simplesmente por saber que, neste parágrafo de encerramento (página 408), estou sendo citado por Gerard Jones:
“Esses homens, arrancados na infância de um mundo antiquíssimo, mergulharam na corrente vital de um mundo* que vivia seus momentos mais jubilosos, brutais, corruptos e ilimitados. Reagiram com os desejos mais malucos, com as fantasias mais improváveis, e durante a vida inteira trabalharam para vender essas fantasias a uma nação que existia metade em fatos apreendidos a duras penas e metade em suas próprias imaginações. No choque entre desejo e possibilidade, construíram uma nova realidade. Na estranha alquimia entre seus longos passados e o presente indefinível de uma nação híbrida, vislumbraram e criaram o futuro”.
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*aqui eu troquei a palavra “país” por “mundo”