WILCO & o Alternative Country
Por ocasião da minha participação no projeto Rock on The Roof, no Imperator (Mérier), a convite do Alessandro Alr, em que falei sobre o disco “Yankee Hotel Foxtrot”, em 4 de agosto de 2018.
Comecemos por um comentário do Jeff Tweedy, frontman da banda Wilco, sobre o disco Being There (em entrevista pra revista No Depression #5 , de set/out de 1996):
“Eu queria deixar bem óbvio que nossas influências estavam lá, assumidamente. Porque acho que hoje em dia os artistas não se citam tanto, nem falam abertamente sobre o que os influenciou. E tudo vem de algum lugar, cê sabe. Eu queria soar tipo como se estivéssemos tocando nossas coleções de discos. Como se fosse só os caras duma banda, na garagem, botando seus LPs na vitrola e se divertindo.”
É uma afirmação curiosa, considerando como o ego que os artistas do pop cultivaram nas últimas décadas. O rock costuma ser pretencioso, mesmo quando as letras tratam de trivialidades ou bobagens: o artista quer ser levado à sério e considera o que faz diferente de tudo o que veio antes.
Jeff Tweedy é outro tipo de compositor e intérprete. Parece não ter vocação pra popstar, a despeito das turnês transatlânticas, da onipresença na imprensa especializada ou do assédio dos fãs. No projeto paralelo Golden Smog, por exemplo, Tweedy e os outros caras da banda usaram pseudônimos: já eram estrelas, mas queriam fazer shows e se divertir, sem chamar demasiada atenção.
(Golden Smog é uma all-star band criada pela farra – o primeiro EP trazia apenas versões, para Thin Lizzy e Rolling Stones, por exemplo. Lançaram dois álbuns entre 1996 e 98, e mais dois uma década depois. O “núcleo duro” da banda é o Dan Murphy do Soul Asylum, Kraig Johnson do Run Westy Run mais Gary Louris e Marc Perlman, ambos do Jayhawks – na bateria tiveram o Chris Mars do Replacements e o Jody Stephens do Big Star.)
Eventualmente surge uma turma que se apresenta como discípulos de velhos mestres e assume como missão revitalizar certo gênero ou dar contuidade a alguma tradição, como no caso do Rockabilly pós-Stray Cats retomando o som dos anos 50, o 2-Tone resgatando o ska jamaicano e o punk com relação ao rock de garagem sessentista. O romancista português Miguel Esteves Cardoso, que na mocidade escrevia para revistas especializadas em música, escreveu um sensacional ensaio sobre isso chamado “O ovo e o novo: uma discografia duma década de Rock (1970-1980)”, disponível na segunda e ampliada edição de “Popmusic-Rock”, de Philippe Daufouy e Jean-Pierre Sarton (Edições A Regra do Jogo, 1981).
Não me lembro de como conheci o Wilco, mas tenho certeza de que a banda chegou até mim via o “indie rock”, o que pra minha geração (cuja adolescência foi vivida nos anos 90) tinha a ver com guitar bandas como Sonic Youth e Dinosaur Jr, com selos como o midsummer madness e festas como a Maldita (do Zé & Gordinho). Era essa a turma que escutava o Wilco: universitários que desgostavam do Pearl Jam por ser “pop demais”. Um acidente, claro: o Wilco pode ser barulhento e com certeza suas guitarras tem a complexidade e exuberância de timbres e efeitos caras aos fãs do Pixies e Hüsker Du, mas Wilco vem de outro contexto: o Alternative Country.
E como pode uma banda que bebe no country fazer sucesso entre os descolados roqueiros alternativos? Tenho uma loja de discos há quase 20 anos, frequento shows e festas de rock alternativo há mais tempo ainda, e é evidente o preconceito, entre os roqueiros brasileiros, contra o country – sempre associado ao gringo branquelo, sulista e republicano, eleitor do Trump. Country por aqui é visto como algo careta e machista.
O folk, por outro lado, é hype. Todos os descolados amam Nick Drake e Tim Buckley. Bob Dylan, herói inconteste, foi o rei da cena folk do Greenwich Village, em Nova Iorque, no início dos anos 60. E louvam Johnny Cash. Mas peraí: Johnny Cash não é country? Vale a pena esclarecer os termos:
COUNTRY é uma forma musical, como o blues: convenções harmônicas e rítmicas. Tecnicamente, pode-se identificar um country pela partitura. Há uma instrumentação costumeira (em especial o uso da steel guitar) e temas recorrentes nas letras. Foi basicamente inventado pelo Hank Williams.
FOLK é uma abreviação de folclore e indica um tipo de música entranhada na cultura de um povo e / ou de um lugar. Antes da categoria “world music” aparecer nas lojas de discos norte-americanas e europeias, era na seção Folk em que você encontraria o samba, por exemplo: música folclórica brasileira. Já a bossa-nova não é folk, pois se trata de um gênero recente, de origem burguesa (Zona Sul do Rio de Janeiro) e documentada (nasceu com certos caras, compondo certas canções, gravando certos discos). Já o maracatu é uma música folk.
O folk tem relação com memória e senso de comunidade. Essa é a música passada de pai pra filho, cultivada nos almoços de família aos domingos, e não apenas as autorias costumam ser esquecidas (pergunte aos frequentadores de rodas de samba se ele sabe quem compôs o que ele está cantando), como costumam haver variações nas letras: as mesmas melodias aparecem com letras diferentes, dependendo da época e do lugar. “The house of the rising sun”, imortalizada pelos Animals, e “Whiskey in the jar”, gravada pelo Thin Lizzy (e Belle & Sebastian, e Metallica...), são bons exemplos.
A música realmente popular está sempre envolta em mistério: muitos de seus gênios morrem na pobreza, são reconhecidos postumamente e seus biógrafos sofrem com a falta de informação a seu respeito. O que dá margem pra mil confusões, algumas delas intencionais. Rouba-se muita autoria: muitos sambistas negros das favelas, nas décadas de 30 e 40, pra ter o que comer venderam suas composições a brancos com acesso à indústria fonográfica. E rouba-se até a história de vida.
Robert Johnson (1911-1938) é lembrado por ter vendido a alma ao diabo numa encruzilhada para tornar-se um mestre do blues. Na verdade essa é a história de Tommy Johnson (1896-1956), com quem Robert aprendeu a tocar violão. Robert gravou entre 1936 e 37, Tommy já havia gravado em 1928. E Tommy, por sua vez, aprendeu com Charles Patton (1891-1934) nas plantações de algodão em Drew, no Mississipi, onde trabalhavam. Até Bob Dylan trapaceou! O primeiro trabalho de Robert Allen Zimmerman foi tocando piano para Bobby Vee. Quando Bob Zimmerman voltou pra sua cidadezinha com o compacto (sem capa) debaixo do braço, disse pra todo mundo que aquela voz era a dele, que Bobby Vee era seu nome artístico!
Pete Seeger (1919-2014), um dos principais nomes do folk norte-americano, consagrou-se promovendo os Hootie Nannies, saraus itinerantes em que qualquer Zé Ruela podia aparecer com seu violão e cantar. Você acha que Seegr pedia algum documento pro sujeito, provando que a canção era dele? Claro que não. Se o Zé Ruela estivesse brilhando com a canção alheia, passava batido.
Woody Guthrie (1912-1967) é outro grande nome do folk. Como Seeger, era socialista e sempre esteve disponível para cantar em assembleias sindicais, comícios e piquetes. Estou falando de uma música super a ver com o white trash da América profunda, mas no melhor dos sentidos: música da classe trabalhadora, dos sub-empregados, dos biscateiros. Nos anos 90 a filha de Woody, Nora Guthrie, decidiu dar as composições inéditas do pai (que não pôde mais gravar por causa da Doença de Huntingon) a um cantor que fosse, como seu pai, comprometido com causas sociais. Procurou o inglês Billy Bragg, também socialista, que convidou o Wilco para ser sua banda nesse projeto, que resultou em 3 discos. (Curiosidade: Jeff Tweedy não se interessou, mas Jay Bennett sim: sua banda anterior, Titanic Love Affair, tem nome tirado de uma canção do Billy Bragg.)
Ouso dizer que a ambição máxima de um compositor é ser esquecido.Popularizada ao máximo, o autor desaparece, como no caso das marchinhas de carnaval. Quantas canções de Lamartine Babo e Ary Barroso são cantadas por gente que não tem idéia de quem eles sejam? É como o arquiteto que projetou uma praça tombada, importantíssima para a cidade, uma praça que todo mundo frequenta – sem jamais pensar aquele lugar foi criado por alguém.
Mas vamos: E ESSE TAL DE ALTERNATIVE COUNTRY?
Dá pra intuir: country feito por roqueiros ou rock feito por cowboys. Mas não é o country-rock, algo que já existia desde os anos 60 (Creedence Clearwater Revival), porque se refere a uma outra geração, com outras referências.
O alt.country foi uma novidade e surpreendeu muita gente, mas melômanos mais atentos sabem que essa mistura de punk e country, essa esquisitice velvet-underground com banjos, foi feita nos anos 80 sem chamar tanto a atenção da crítica, ou sem que os artistas fossem vistos como um “movimento”. Uma lista de artistas que podem ser vistos como pioneiros do alt.country, todos da América do Norte:
Green on Red (1979-92)
The Feelies (1976-92)
The Replacements (Paul Westerberg) (desde 1979)
Social Distortion (Mike Ness) (desde 1978)
R.E.M. (desde 1980)
The Long Ryders (1982-87)
Jason & The Scorchers (desde 1981)
Giant Sant (Howe Gelb) (desde 1985)
Dream Syndicate (desde 1981)
Jayhawks (desde 1985)
Cowboy Junkies (desde 1985)
Michelle Shocked (desde 1985)
Steve Earle (desde fins dos 70)
Rheostatics (1978-2007)
AÍ O FANZINE “NO DEPRESSION” LANÇOU O TERMO alternative country. Na verdade Grant Alden escutou o termo num papo com o empresário da banda Tarnation, Ben Chinn. No Depression é referência a uma canção da Carter Family gravada pelo Uncle Tupelo em seu disco de estréia, em 1990. O fanzine, que logo tornou-se uma caprichada revista, se definiu como dedicada à “música tradicional sem espaço na rádio comercial”.
O primeiro número, de agosto de 1995, teve 32 páginas e tiragem de 2 mil exemplares. Trazia na capa o Son Volt, uma das duas bandas nascidas das cinzas do Uncle Tupelo – a outra é o Wilco. Em 1998 a No Depression já tinha tiragem de 13 mil exemplares e 96 páginas. A revista existe até hoje: trimestral, com 128 páginas trimestral e ZERO anúncios!
Os criadores da No Depression, Grant Alden e Peter Blackstock, estavam em Seattle, cidade fundamental pra cultura roqueira. Digo “cultura roqueira” porque não se trata apenas de música. É de Seattle, por exemplo, a editora Fantagraphics (onde Mark Arm, do Mudhoney, trabalhou), que lançou os quadrinistas Charles Burns, Peter Bagge, Daniel Clowes e Joe Sacco. Uma turma que já ilustrou muitas capas e encartes de discos de rock...
E O GRUNGE É DE SEATTLE! Pois bem: o alt.country é da mesma geração. São estilos “irmãos”, por assim dizer, ainda que essa seja uma afirmação sobre a “sensibilidade” desses artistas, e não sobre semelhanças entre seus sons. (Mas Eddie Vedder anda gravando discos de Ukelelê...)
Mark Arm (Mudhoney) e Matt Cameron (Soundgarden, Pearl Jam) nasceram em 1962. Chris Cornell, Eddie Veder, Mark Lanegan (Screaming Trees) são de 1964. Krist Novoselic é de 1965. Já de 66-67 temos: Andrew Wood (Mother Love Bone), Kurt Cobain, Scott Weiland, Robert DeLeo (Stone Temple Pilots), Jerry Cantrell e Mike Inez (Alice in Chains) + Jay Farrar & Jeff Tweedy.
O elo de ligação entre o grunge e o alt.country é NEIL YOUNG & CRAZY HORSE, ídolo deles todos, com uma pegada absurdamente influente nos anos 90.(Procure também pelos discos do Willie Nelson e do Kris Kristoferson).
É impossível listar as bandas do alternative country, é uma quantidade colossal. Destaco Whiskeytown, Gourds, Mendonza Line, Lambchop, Cracker, Freakwater e Alejandro Escovedo.
UNCLE TUPELO foi a primeira banda de Jeff Tweedy e Jay Farrar: dois caras de Belleville, cidade de Illinois com 40 mil habitantes. Tocavam muito na vizinha St. Louis, porque lá estavam os Bottle Rockets, a única banda da região com quem rolava uma afinidade musical. St. Louis está no meio do caminho entre Nashville (no Tennesee, capital do country) e Chicago (berço do tecno). É a região dos Grandes Lagos, onde também está Detroit, famosa pelo proto-punk do MC5 e Stooges.
Jeff e Jay eram fãs do Hüsker Dü e do Black Flag, mas acharam mais fácil tocar country: linguagem que dominavam, mais acessível. Ryan Adams certa vez confessou: “Comecei uma maldita banda country [Whiskeytown] porque punk era muito difícil de cantar”.
Ken Coomer, primeiro batera do Wilco, já disse: “Jeff sempre foi mais fã de punk do que de country.” E na canção “Heavy metal drummer”, Jeff canta, depois de mencionar cabelo oxigenado e pedal duplo (clichê do heavy metal): ““I miss the innocence I´ve known / playing KISS COVERS / beautiful & stoned”.
(Chicago, onde Jeff Tweedy acabou fixando residência, e onde vive até hoje, tinha dois caras importantes pra se entender essa fusão maluca de country e punk. STEVE ALBINI foi engenheiro de som do Pixies, Gore, Jesus Lizard, Urge Overkill, Pussy Galore, TAD, Superchunk, Helmet e Jon Spencer Blues Explosion, só pra citar alguns exemplos. E com o bróder Will Oldham gravava uns sons inspirados no country, procure por “Palace”, alcunha que usavam. O outro cara é o JON LANGFORD, do Mekons: banda pós-punk inglesa que estreou com Gang of Four e Human League, por volta de 1978. Com o Mekons gravou covers de Merle Haggard e Gram Parsons, além de um disco inteiro com versões para Johnny Cash. Louco por country, Jon explora essa seara usando nomes como The Waco Brothers, Pine Valley Cosmonauts e Jon Langford´s Hillbilly Wagon.)
Uncle Tupelo gravou 4 discos entre 1990 e 1993, se tornaram uma banda cultuada (apesar das vendas modestas) e abruptamente, sem explicações, Jay Farrar caiu fora. Se mudou pra New Orleans e colou com Jim Boquist (e seu irmão, que tocava banjo e mandolim, ambos de Minneapolis). Foi gravar o primeiro disco de sua nova banda, Son Volt, em Northfield, em Minnesotta: cidade onde o povo resistiu a um assalto à banco do bando de Jesse James, escorraçando o notório bandido de tal forma que ele passou os dois ou três anos seguintes escondido.
A No Depression considerava Jay Farrar “o melhor compositor de sua geração”.Comparado a ele, Jeff Tweedy era considerado simplório, direto demais. Rebatendo a crítica, já à frente do Wilco, Jeff Tweedy comparou sua escrita ao momento de um filme em que o personagem conversa com a câmera: “Não ligue pro que eu digo. Na real eu não sei do que tô falando. Saiba apenas que eu me importo muito com o que estou fazendo.”
Na mesma entrevista – para a No Depression, claro - Jeff acaba deixando clara qual sua incompatibilidade com o sisudo Jay Farrar: “Nunca curti esse approach sóbrio, circunspecto, de fazer música. Acho uma bobagem. Eu acho que tem de ser divertido. Música é entretenimento. Pode ser sério, pode ser triste, mas na maior parte do tempo eu só quero me sentir bem.”
A estréia do Wilco em palco foi no dia 17 de novembro de 1994. E a primeira gravação foi pro disco RED HOT + COUNTRY: uma versão pra “the TB is whipping me” do Ernest Tubb (pioneiro do country “honky tonky” nos anos 40) com Syd Straw – que foi do Golden Palominos com Matthew Sweet, e backing vocal da Richie Lee Jones, Leo Kottke e Dave Alvin.
O primeiro ábum, “A.M.”, de 1995, foi um fracasso de vendas e foi ignorado pela crítica. Mas com BEING THERE (1996) alcançaram sucesso de crítica e público, com o single “Outta side (outta mind)” levando a banda pra parada de sucessos da Billboard. Curiosamente foi gravado no estúdio WAR ZONE, em Chicago, tradicionalmente de tecno e indústria: cheio de synth, beat boxes e parafernálias eletrônicas, nem tinha monitores na sala onde a banda tocava! “Being There” é um álbum duplo, mas a banda conseguiu que fosse lançado a um preço próximo de disco simples – deixando seus royalties pra gravadora, acordo que fez a banda perder, até 2003, 600 mil dólares. Durante as gravações de “Being There” o Max Johnson, da formação original, sai, se sentindo pra escanteio com a proeminência de Jay Bennett, multi-instrumentista que tornou-se o braço direito de Jeff Tweedy.
Durante muitos anos rolou uma dança das cadeiras na Wilco. O baixista John Stirratt é único sobrevivente da formação original. E também toca outros instrumentos eventualmente, como piano e violão, além de fazer backing vocals. É uma opinião muito pessoal, e intuitiva, mas desconfio que essa flexibilidade na instrumentação – e consequentemente nos arranjos – é uma fórmula para manter os músicos excitados com a banda. Uma fórmula para que a banda continue um trabalho desafiador instigante, ao longo dos anos. Como no caso do Radiohead.
E chegamos ao YANKEE HOTEL FOXTROT: quarto álbum, gravado em 2001 e lançado no ano seguinte, é o último disco antes da formação se consolidar.
Foi produzido pela banda, mas com grande peso do engenheiro de som Jim O´Rourke: produtor e multi-instrumentista de Chicago (depois foi pra NY e hoje mora no Japão. Entre 1999 e 2005 Jim integrou o Sonic Youth, mas seu currículo inclui uma variedade imensa de estilos musicais, tanto que mixou o terceiro e póstumo disco da Judee Sill, cantora “folk” dos anos 70.
(Jeff Tweedy era fã dos discos solo do Jim O´Rourke e através dele conheceu o batera Glenn Kotche, que convidou para substituir Ken Coomer no Wilco. Jeff, Jim e Glenn gravaram dois álbuns com o nome Loose Fur, em 2003 e 2006. Antes de ir pro Wilco, Glenn Kotche passou 4 anos com o singer-songwriter Bill Santen - a.k.a. Birddog -, com quem “The Trackhouse, The Valley, The Liquor Store Drive Thru”, produzido pelo Elliot Smith.)
As gravações do Y.H.F. são lembradas como um momento feliz pela banda, mas foi também o período em que pequenos problemas desaguaram numa grande treta, e o pivô dessa história é JAY BENNET .
Minha impressão é de que o Jeff Tweedy sempre precisou de ajuda no estúdio. Tweedy é um visionário e um perfeccionista. Está em busca de um som diferente e sabe distinguir muito bem, com exatidão, entre o erro e o acerto. Mas parece não ter o know-how para navegar entre todas as possibilidades que um grande estúdio de gravação oferece. Tweedy também é muito criativo quanto aos arranjos, mas não é um multi-instrumentista capaz de tirar, de todos os instrumentos que quer usar, uma performance à altura das suas ambições.
Jeff sempre precisou de ajuda, e ainda no Uncle Tupelo recorreu ao Brian Henneman, dos Bottle Rockets. Brian tocou mandolim, banjo, bouzovki e slide guitar no disco produzido por Peter Buck (do R.E.M.) - intitulado “March 16-20, 1992”.
Jay Bennett foi o mago do estúdio em “Being There” e o seguinte “Summerteeth”. Só que nas gravações de 1999, do terceiro disco, Tweedy vivia um momento conturbado no casamento (talvez fosse apenas o nascimento dos filhos) e delegou muito mais poder ao Jay. Bennett estava loucamente entusiasmado por um mellotron que acabara de comprar e pirou nos sintetizadores. A banda estava usando Pro Tools pela primeira vez e abusaram dos overdubs. Jay Bennett ainda mixou o disco, e o resultado foi um tanto barroco. Ficou assim mesmo, mas a mixagem desagradou bastante Jon Stirratt e Ken Coomer.
Jay Bennett seria o engenheiro de som e chegou a mixar o Yankee Hotel, mas Jeff Tweedy pediu uma “segunda opinião” pro Jim O´Rourke. Jim re-mixou “I´m trying to break your heart” e até Jay concordou que ficava melhor. Jeff Tweedy queria algo “mais acessível” e achava que Bennett puxava pra um som “mais hermético”.
Os créditos no encarte de Yankee Hotel Foxtrot são estranhos:Glenn Kotche aparece como da banda, Ken Coomer numa segunda lista, não-definida (músico convidado? Participação especial?). Jay Bennett aparece como da banda, Jim O´Rourke na segunda lista. (E entra Mikael Jorgensen, até hoje na banda.) Tweedy acaba demitindo Jay depois do disco lançado. Jim O´Rourke acabou produzindo o disco seguinte do Wilco, “A ghost is born”, que ganhou o Grammy de melhor LP de Rock Alternativo.
A demissão do Jay Bennett é uma questão delicada. Pra ser ter uma idéia da importância de Jay, ele assina, em parceria com Jeff, TODAS as canções de Y.H.F. (Jeff escreve as letras sozinho). Era necessária? Poderia ter sido feita de outra forma? Houve ingratidão por parte de Jeff Tweedy? O documentário “I am trying to break your heart”, do Sam Jones, registra bem a pinimba. Assista e tire suas próprias conclusões.
O que há de tão especial em Yankee Hotel Foxtrot? Pra começo de conversa: as canções são fantásticas. Tem 8 ou 9 singles poderosos ali! E é um disco descontraído. Foi gravado num loft, e não num estúdio tradicional.
É também um disco alto-astral. As gravações estavam agendadas pra começar em 11 de setembro de 2001: quando houve o ataque às Torres Gêmeas em Nova Iorque. Como a banda reagiu à isso? Decidiram fazer um disco “pra cima”, pra levantar a moral do público. Foi uma reação interessante: não partiram pro discurso político, mas foi inegavelmente uma decisão política. E é exatamente o que se passou com Neil Young e seu disco “Are You Passionate?”, gravado entre fevereiro e dezembro de 2001. Eu diria que é o perfeito exemplo que como pensa um artista folk, expressão de um senso de “responsabilidade social”.
(Em 2008 o Wilco e o Fleet Foxes gravaram uma versão para “i shall be released” do Bob Dylan. Disponibilizaram para download gratuito, mas propuseram uma barganha aos fãs: que baixassem de graça, mas em troca votassem no Barak Obama.)
FINALMENTE, A ANEDOTA: a gravadora Reprise recusou o disco. Demitiu a banda, que teve de pagar U$ 50 mil pra ficar com o disco (não sabemos quanto custou de fato essa produção, mas foi pelo menos 85 mil). Meses depois, o Wilco vendeu o disco pra Nonesuch por U$ 150 mil. Só que... os dois selos são da WARNER! A gravadora acabou pagando 2 vezes pelo disco!E Yankee Hotel Foxtrot acabou sendo o campeão de vendas do Wilco!
A revista Rolling Stone o botou entre os 500 melhores discos de todos os tempos. Já para a Q Magazine está entre os 100 melhores. O erro pegou muitomal pras Warner junto à crítica e ao público. Até o ex-presidente da Warner, Howie Klein, que se aposentou dois dias antes da demissão do Wilco, criticou publicamente a empresa. Depois disso a gravadora deu carta branca pra alguns artistas – como o Flaming Lips -, com medo de perdê-los. Enfim: a arte venceu no fim!
Ademais: ESCUTE O(S) DISCO(S). Odeio crítica “impressionista.” A música não tá aí pra ser descrita, tá ai pra ser escutada, cada um entende – e sente - do seu jeito.
Play the record, DJ!
INFORMAÇÕES EXTRAS:
# DEPOIS DA GRAVAÇÃO DE “A GHOST IS BORN” (1º disco no top tem: 2004) Tweedy foi pruma clínica se tratar do vício em remédios pra dor. Tem enxaquecas crônicas desde criança (“migraines”, de origem genética) associado à depressão e ataques de pânico.
# JEFF TWEEDY É CASADO com Sue Miller (com quem teve ou tem uma casa de shows), que era agente de artistas, desde 1995 – o namoro começou em 91.O casal tem 2 filhos: Spencer é baterista.
# O ao vivo “Kicking Televion” de 2005 celebra 10 anos de carreira e a formação definitiva, sexteto. Talvez seja o disco mais “rock´n´roll” da banda.
# SKY BLUE SKY: volta ao processo orgânico de gravação e colaborativo na composição. Inspirado em Fairport Convention e The Byrds. Chegou no Top 5 mas a crítica pegou: no geral disseram que “não era o melhor álbum” da banda. Talvez seja meu disco predileto do Wilco.
# Escute 2 discos fundamentais pro crossover entre country e rock: ”Sweetheart of the Rodeo”do The Byrds (único álbum da banda com Gram Parsons, de 1968) e Grievous Angel do Gram Parsons.