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Guia do Rock Underground Brasileiro, Parte 5 : Séc. XXI: Tradicionalismo tijucano, Audio Rebel, Plano B & Comuna, o CEP 20.000 e a LOUD!

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Esse é um artigo colaborativo e "em construção", ou assim espero. Conto com sugestões, correções, acréscimos e refutações enviadas por eventuais leitores. Isso pode ser feito através dos comentários, ou você pode enviar um e-mail para baratosdaribeiro@gmail.com

E agradeço desde já por todos os pitacos.

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Como falar da “cena (underground) roqueira atual”? Porque afinal é a passagem do tempo que separa o joio do trigo, revelando quem permanece, se não em atividade, no mínimo como influência / referência para as bandas que vem depois. O mesmo tempo que nos dá distanciamento crítico para julgar o mérito artístico da banda, ou entender como o contexto ajudou ou prejudicou sua carreira. Se bem que como não sou crítico musical, mas apenas um fanzineiro usando novas ferramentas, não de sinto nessa obrigação.

Também por não haver distanciamento eu corro o risco de ser cruelmente crucificado ao esquecer dessa ou daquela banda. E são milhares!

Entonces é o seguinte: decidi organizar esse guia a partir dos lugares onde rolam shows importantes e onde as diversas turmas se reúnem. E já que este guia nasceu para ajudar um amigo gringo, recém instalado no Rio, a encontrar a sua “turma”, espero que esse esquema o torne ainda mais útil.



O LEGADO DO GARAGE: CALABOUÇO, PORTO PIRATA E AUDIO REBEL:

O Garage foi o lugar dos sons pesados por excelência, tanto do hardcore como o heavy metal, como de todos os derivados desses gêneros. O templo fechou, mas o vizinho continua funcionando. Durante o dia o Heavy Duty é uma oficina especializada em motos sinistras, tipo Harley Davinsons, e de noite vira um bar onde tocam muitas bandas de rock clássico e heavy metal, como a DM9 – especializada em covers de Deep Purple.

A Tijuca, único bairro que gerou um adjetivo com um substancial significado – “tijucano” – faz jus à sua fama de conservadora, em se tratando de sons, a julgar pela suas lojas de discos; em torno da Praça Saens Peña existem 4, pelo menos: a Dark Land, a Boogie Oogie, a Sherazade e a Headbanger (minha predileta, pela sintonia entre meu gosto pessoal e o do Cláudio Borges, que trabalha lá). Como os nomes indicam, metade delas é especializada em rock pesado e a outra metade em rock clássico.

O Calabouço é um bar numa rua transversal à Praça Varnhagem (um agitado pólo boêmio) onde se reúnem basicamente metaleiros cabeludos, e é uma casa mais do que conservadora: além das bandas precisarem ter um som mais “convencional”, eles não costumam contratar bandas autorais. No geral é banda cover mesmo, pois acreditam que há menos risco de desagradar o público. Mas sei de pelo menos uma boa banda autoral, que já sé apresentou lá algumas vezes (por terem na manga um show com ênfase em versões), a Maya – de uma galera muito jovem, mas que é fã, por exemplo, de sons mais interessantes da tradição prog, como o King Crimson. Mas é possível que tenham passado por lá algumas das boas bandas locais de heavy metal autoral, que seriam, segundo minhas fontes: Venin Noir, Havenfalls, Lost Forever, Allegro, Sigma 5, Imago Mortis e Dust From Misery – as duas últimas eu conheço e subscrevo.


A turma do rock clássico que gosta de bandas covers tem outro cantinho pra ir, que é o Rio Rock Blues, na Lapa. Um lugar que merece ser citado porque muuuuito de vez em quando rolam shows de bandas autorais– que acabam não voltando, porque parece que o esquema da casa é cruel e impiedoso para com os músicos, pra não dizer indecente. Aqui de repente você pode encontrar o Statik Majik, banda que fica entre o stoner e o metal mais clássico (na onda do Sabbath) bastante elogiada pelos fãs do gênero – e com material autoral também. (E em Jacarepaguá existe um ligar ainda mais isolado, onde realmente as leis da física parecem ter entrado em colapso e o tempo congelado: o Néktar. Esse realmente é pros saudosos inveterados, para sempre bichos-grilos.)

em se tratando da turma do hardcore, há dois lugares onde o pessoal pode ser encontrado nos dias de hoje.


O Porto Pirata fica pertinho do antigo Garage, e foi criado pelo Diego Ernesto (da banda argentina de ska, Los Dulces Diablitos) e sua esposa, Carol (que é estilista e produtora) em 2013. Em poucas semanas já estava sendo freqüentados pelos órfãos do Garage, em especial pelos punks e fãs de psychobilly. Produtores de festas importantes do gênero, como o Paul Serran e o Wesley Snipes, organizaram festas lá, e algumas delas contaram com shows. Eu estava lá tomando uma cerva com o Duncan Reid (da banda inglesa The Boys) e com o Mauk Garcia (da banda rockabilly Big Trep, que iria acompanhá-lo) e tive a sorte de ver o Honor Ferox fazer boa parte do seu show. O azar foi que o equipamento pifou, e, pela primeira vez em 27 anos de carreira, Duncan deixou de fazer um show, mesmo já estando no local, com seu baixo nas costas. Honor Ferox é uma excelente banda Oi (e eu adoro o Business) e havia uma dúzia de carecas tatuados, de suspensórios e coturnos, por lá. Na mais santa paz – mesmo depois duns 30 anarcopunks terem chegado na maior provocação gratuita. Um outro show que tentamos ver foi durante a vernissage do Maurício Porão, fotógrafo ligado à cena punk, gótica e metaleira. Mas a banda de synth-pop gótico esqueceu de levar a fonte de alimentação do Mac e esse show também não rolou! Enfim, esses depoimentos devem dar uma idéia de como funciona o Porto.... A minha esperança é que eles se profissionalizem (minimamente) em muito breve, porque o Diego é um cara super gente boa, de muito bom gosto e muito bem intencionado.

Mas o hardcore e o punk não são necessariamente rígidos, em termos estéticos, e uma das minhas bandas prediletas dá prova disso, o Fugazi. Mesmo o heavy metal gerou o grind, o death e outras doidêras, algumas delas crossovers que desafiam as categorias do “cânone”. Provas brazucas disso são o Elma (banda instrumental de São Paulo, que lançou um vinil faz uns meses) e o Te Voy A Quebrar– banda liderada pelo Alejandro, que canta ora em português, ora em espanhol, ora em inglês e às vezes nuns grunhidos que não consigo distinguir.


E o principal palco do Rio para esses sons pesados e experimentais é o Audio Rebel, que funciona também como estúdio (ensaio e gravação) e como loja de instrumentos – na Rua Visconde Silva, em Botafogo.

Existe uma banda importantíssima para se entender a conexão entre a molecada tatuada & fã de rock paulêra (como diria minha mãe) e a “vanguarda desconstrutivista” (fã de música eletroacústica, de John Cage, John Zorn, Fantomas, krautrock, La Monte Young, Steve Reich etc), que detesta o formato canção – essa coisa “antiquada”, com estrofe / refrão / estrofe / refrão / solo / refrão etc, apegada à “velharias” como harmonia e melodia.... É o Hurtmold, banda paulista duma garotada que era do hardcore, mas que por serem músicos excepcionalmente competentes, foram “entortando” sua música de uma maneira tão incrível que acabaram estampando a capa de revistas especializadas em jazz. O primeiro álbum saiu do forno em 2000, e já na sequência - o maravilhoso “Cozido”, de 2002 – quase não havia canções com voz (acho que eram umas 3, de 15). Dali em diante radicalizaram ainda mais, mas curiosamente o que tenha permitido tal liberdade talvez tenha sido o fato da banda ter sido recrutada por Marcelo Camelo para acompanhá-lo em sua (razoavelmente lucrativa) carreira solo.


O multi-instrumentista (mas principalmente percussionista) Maurício Takara é o mais profícuo da turma, já tendo lançado vários – e herméticos – álbuns solos. Mas o trabalho mais palatável dele, fora do Hurtmold, na minha opinião, é o São Paulo Underground, coletivo que formou com Guilherme Granado e Rob Mazurek (compositor e artista plástico avant-guarde de Chicago) – que lançou “Beija Flors Velho e Sujo” em 2013. A programação do Audio Rebel é de extremos: nela você encontra tanto shows de bandas da molecada que ensaia lá (como a promissora Dog´s Face) como uns números internacionais do tipo que poderiam estar numa mostra especial do SESC ou do CCBB – como o trabalho experimental do baterista do Wilco, a saxofonista norte-americana Matana Roberts e os projetos derivados do Fugazi.

VANGUARDA POST-ROCKER: PLANO B & COMUNA

O Plano B divide com o Audio Rebel e a Comuna a preferência da turma vanguardista carioca. Mas enquanto o Audio Rebel ainda tem compromisso com a cena hardcore, e o Comuna foi fundado por uns caras de 20 e tantos anos que nunca se enxergaram como roqueiros (e gostam de música eletrônica tanto quanto de Radiohead), o Plano B foi criado pelo Fernando Sagita, da velha guarda de roqueiros cariocas, que desde os anos 70 curtiam maluquices musicais, porém via o rock progressivo – e principalmente o krautrock.

Fernando chegou a ter uma banda chamada “Can do Garfo” em alusão ao álbum “Future Days”, da banda alemã Can. Fernando nunca foi um exímio tocador de instrumento algum (oficialmente acho que sua “arma” no palco era uma corrente, que ele investia contra o público – e eu estou falando muito sério, por mais incrível que pareça). É da turma que freqüentou a Bausack, lendária loja de discos (na Rua Correa Dutra, no Catete) que reunia a turma mais despirocada, e Fernando passou longos anos vendendo discos na Rua Pedro Lessa, ao lado da Biblioteca Nacional, na Cinelândia.


Enquanto foi, muito brevemente, a Bolacheiro, o lugar pôde ser descrito como uma loja de discos. Quando os donos quiseram fechar, o então funcionário Marcos Spacecake (fanzineiro das antigas, da Vila da Penha, ligado ao pessoal do Gangrena Gasosa e do Circo Voador) convidou o Fernando e juntos eles transformaram a loja de discos num pólo de agitação cultural, com shows, mostras de vídeo e cursos para “formar subversivos musicais” – como, por exemplo, de “circuit bending”, a arte de transformar brinquedos e outras quinquilharias eletrônicas em instrumentos musicais(?).

Isso atraiu tanto os quarentões ligados no pós-punk dos anos 80 (como o Tantão e Jenner, que junto com o ex-Black Future montou o John Merrick Experience nos 90s), quanto punks da velha guarda (como o Cid, ex-Gangrena e que montaria o Uisqueletos Estravaganza Orquestra) e a turma de trintões fãs de Aphex Twin (como a  Leandra Lambert, do projeto Voz Del Fuego, e André Paixão, que lançou remixes para sua própria banda pós-Acabou La Tequila, o Nervoso & Os Calmantes), como uma turma mais jovem, com formações diversas: Pedro Bonifrate (da banda indie low-fi Supercordas), Negro Léo (néo-tropicalista, casado com Ava Rocha, filha do cine-novista Glauber), Lê Almeida e Wallace Costa (do low-fi e folk psicodélico) e a turma do Chinese Cookie Poets.


O que mais fez minha cabeça, desse turma, foi o Lavajato, uma banda que era bastante improvisada e caótica,mas partia de algo que era pra mim minimamente reconhecível: o noise / shoegazer / low-fi dos anos anos 90, a La Spacemen 3 e Sonic Youth. O líder era o Carlos, um professor de arte que tirava uns sons doidos do violino elétrico, mas que, mais importante, era um fenomenal organizador de idéias e catalizador do talento alheio. Tinha um faro incrível para recrutar seus comparsas.

Alguns dos músicos que tocaram com Carlos D haviam anteriormente atuado no Sensorial Estéreo, que tinha o grande Sandro Rodrigues na bateria. Outro ex-Lavajato é o Filipe Giraknob, que toca guitarras modificadas (nada de riffs: só ambiências). Filipe e Sandro tocam hoje em dia no Supercordas, banda criada pelos compositores Pedro Bonifrate e Valentino, um combo experimental-psicodélico que de início foi adotado pelo Rodrigo Lariú – papa brasileiro do indie rock (no sentido que o termo tinha nos tempos do Pixies, Husker Dü e Teenage Fanclub), porque na época o som do Supercordas realmente se alinhava com o “ethos” da midsummer madness. Bonifrate foi um dos que se aventurou no circuit bending, e hoje em dia ele é guitarrista  da banda que Sandro Rodrigues montou para cantar suas próprias composições, a Digital Ameríndio & (American Bigfoot) Mouse Mouse Joe– que conta ainda com o baixista Löis Lancaster (ex-Zumbi do Mato) e o baterista Robson Riva (Seletores de Frequência, Comaches).


Na mesma época (meados da década passada) havia o LOVNI, um projeto-de-um-homem-só fortemente inspirado no pós-punk oitentista e com muitos sintetizadores. O cara se mudou para São Paulo – onde havia um outro projeto com aura de “Plano B”, o Objeto Amarelo. Mais recentemente, e também com raízes no noise dos anos 90 e no pós-punk dos 80, apareceu o excelente Arco Voltaico. Lavajato, Supercordas, Digital Ameríndio & Cia formam o “lado pop” da piração “plano-bebística”.

Mas o Plano B não resistiu à saída de Marcos Spacecake - falecido em 2011, mas não sem antes criar a Feira de Discos de Vinil, em parceria com o sebo a Baratos da Ribeiro. As atividades com shows e performances foram se sobressaindo à de loja de discos e acessórios. Eu mesmo morei por 2 anos na mesma rua do Plano B, e não conseguia freqüentar porque NUNCA estava aberta. (E nas noites de evento era impossível garimpar discos!) Fernando está fechando a loja este mês (e pedaços da fachada e do mobiliário estão à venda. Tem até uma serra lá pra quem quiser se servir de um pedaço da porta. E novamente: é sério, eu juro). Mas uma campanha feita pelos fãs daquela maluquice levantou a grana necessária para que Fernando se ajeite financeiramente, e conseguiu para o Plano B uma sala na UERJ (no Maracanã), onde agora poderão funcionar plenamente como “pólo de experimentação sonora”.

Onde escutar o terrorismo sonoro do Plano B:


O Comuna deve herdar parte dessa vanguarda artística– até porque a turma da Zona Sul é preguiçosa quando se trata de deslocamento e o Comuna fica em Botafogo, na Rua Sorocaba. Em parte porque já tem abrigado eventos dedicados à música experimental, como o Quintavant (que também já rolou no Audio Rebel e no Saloon 79), evento que já trouxe ao Rio a banda (instrumental) portuguesa Signs of Silhoutte.

Tenho zero interesse nesse tipo de experimentação contemporânea (apesar de já ter curtido Holger Czukay e Aphex Twin, por exemplo) e não me animo a seguir investigando essa obscura região da cena. Mas o Comuna me soa o habitat natural para ela, pelo fato de ser um negócio criado por caras muito jovens, e que naturalmente trabalham em consonância com os novos tempos:

1) Eles detestam categorias tradicionais como “rock´n´roll”, “pop” e “música eletrônica”. Filhos da radicalização do Radiohead pós-Ok Computer, fãs tanto do Tony Allen (discípulo do Fela Kuti) como de Mister Catra e de Danger Mouse, capazes de curtir tanto uma rave quanto os blocos mudernosos de Carnaval (como a Orquestra Voadora e o Bloco Cru), para eles está tudo junto e misturado. Uma (boa) banda típica dessa turma: Dorgas.

2) Eles cresceram num mundo em que um monte de coisas passaram a ser consideradas “artes plásticas”: do grafite ao cara que passa horas nu, preso numa cadeira de dentista, com uma bala na boca, boca esta que não consegue fechar graças à um “afastador de mandíbula” (uma performance que meu cunhado assistiu). Então os caras pensam mais em “performance” (numa certa acepção pedante do termo) do que em “show” (na acepção de algo que deve ser essencialmente “maneiro”), e tem um especial apetite por lances multimídias feitas por sujeitos que, além de músicos, sejam artistas plásticos, engenheiros de som, videomakers ou qualquer uma dessas coisas mais rebuscadas.

3) Eles não querem ser hypes. (Já não é cool ser hipster.) Até escreveram isso ao anunciar a última temporada. Mas o que fazem é prato cheio para revistas estilosas e descoladas como a Vice. Então as apostas estão lançadas: eles serão ou não serão o Zero Zero (clube e restauranea da Gávea, meca da inteligentsia burguesa carioca) do futuro?

Matéria no Globo sobre a cena de vanguarda, datada de 17/11/2012:


Me parece que a facção da turma do Comuna mais ligada no rock é também a turma do Queremos, uma plataforma de financiamento coletivo criada há poucos anos, e que tem trazido para o Rio bandas badaladas do novo rock internacional, tão badaladas e tão novas que dificilmente já tiveram algum disco lançado no Brasil! Como o Tame Impala, que fez show no Imperator (importante casa de shows do Méier, que brilhou nos anos 80 e foi reaberta recentemente, depois de adotada pelo poder público). Um dos idealizadores do Queremos foi o Tiago Lins, que foi do Hill Valleys, banda em que tocou o Melvin (atualmente do Lafayette & Os Tremendões, DJ e produtor das festas Sundae Tracks).

Mas importante: o Comuna é um espaço com programação variada (e uma cozinha super maneira! Alguns de seus donos são chefs), e já rolavam vários lances diferentes por lá as festas Locos Hermanos (festa dedicado ao rock hispânico) e In Rotation (da turma de DJs encabeçadas por MBgroovie e Sandro Machintal, que tocam apenas com LPs e exploram ritmos africanos, do afrobeat ao hip-hop, passando pelos groovies brazucas).


CEP 20.000: POETAS DA PUC & ARTISTAS DO PARQUE LAGE DANDO UMA FORÇA PRO ROCK

Se a trinca Audio Rebel / Plano B / Comuna situa-se num extremo “anti-pop” do rock (onde a poesia é quase irrelevante, já que a ênfase é peso / minimalismo / performance multimídia), podemos dizer que no extremo oposto estão as bandas que freqüentaram ou freqüentam o evento CEP 20.000.

O Centro de Experimentação Poética foi fundado em 1990 por Chacal e Guilherme Zarvos, ambos poetas das antigas (o primeiro nasceu em 1951 e o segundo em 1957). Chacal estreou na aurora da década de 70 e teve poemas incluídos na antológica revista Navilouca, editada por Torquato Neto e Waly Salomão (na época Sailormoon!), dois dos mais importantes letristas do Tropicalismo, Em 1975 participou do grupo Vida de Artista, ao lado de Francisco Alvim e Cacaso (que foi letrista de Elton Medeiros, Djavan, Edu Lobo, Toninho Horta, Joyce e João Donato, entre vários outros). Em fins da década de 70 Chacal fez parte do Nuvem Cigana e chacoalhou a arte carioca ao lado de Ronaldo Bastos, Charles Peixoto e Bernardo Vilhena (parceiro de Lobão, Ritchie e Cazuza, por exemplo). O namoro de Chacal com a música finalmente foi consumado quando alguns caras da companhia Asdrúbal Trouxe o Trombone (para quem escreveu a peça “Aquela coisa toda”) formaram uma banda de muito sucesso na explosão da new wave no Brasil. Sim: Chacal foi letrista de alguns sucessos da Blitz.


O CEP 20.000 é um espaço de experimentação, e é nesse sentido que esteve sempre aberto à performances teatrais, plásticas e musicais, mas nunca deixou de ser poético: é um espaço que privilegia a palavra, o texto, logo os músicos que pintam na área fazem uma música ansiosa por comunicação ampla, imediata e clara com seus ouvintes. Mesmo que seja num clima de filme de terror, como no caso do Rogério Skylab, nome importante desde os anos 90. Outras bandas importantes na primeira década de atividades do CEP foram o Mulheres Que Dizem Sim e Carne de Segunda, de onde saíram vários artistas importantes hoje trabalhando com Kassin (ex-Acabou La Tequila) e Caetano Veloso, conforme eu detalho do capítulo 3 dessa pesquisa (http://aptovazio.blogspot.com.br/2014/01/guia-do-rock-underground-brasileiro_3005.html). Essa vertente mais “MPBístisca” ou “nativista” das bandas do CEP é melhor representada pelo Boato, banda que flertava com ritmos como o samba e o funk, como na mesma época faziam o Farofa Carioca, Rubinho Jacobina e o Pedro Luís & A Parede .


Talvez a banda mais roqueira da turma fosse o Vulgue Tostoi (cujo guitarrista, Júnior Tóstoi, é dos melhores da paróquia, e produtor de mão cheia), além de Urubu Sertão, Bia Grabois e o Carlos Laufer (escudeiro do Fausto Fawcett e parceiro do Dado Villa-Lobos em suas aventuras pós-Legião).


Do elenco presente nos últimos anos vale destacar Os Outros (que recentemente gravou um ótimo disco tributo ao Roberto Carlos, com a prestigiada sambista Teresa Cristina se aventurando como cantora de rock!), Vulqinho & Os Cara (ótima banda que revelou o Qinho, infelizmente decepcionante como artista solo), Mariano Marovatto (aparentemente mais interessado na sua carreira de escritor e acadêmico, atualmente) e Marcelo Frota (que fundou o excelente Fino Coletivo e depois seguiu com um trabalho mais folk, batizado de Momo, igualmente bacana).

Muitos dos músicos que frequentam o CEP são ou foram estudantes da Pontífica Universidade Católica, a PUC. Fácil de explicar: Guilherme Zarvos é doutor em Letras pela PUC, assim como Ericsson Pires, outro dos pilares artísticos do CEP, que tinha o duo Hapax.

E no meio do caminho entre o Espaço Cultural Sérgio Porto (no Humaitá) e a PUC (na Gávea) está a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (na Rua Jardim Botânico), o que explica que o CEP tenha lançado também um trabalho musical sem canção, o Chelpa Ferro, formado por um trio de artistas plásticos. E com isso tenha havido espaço para o Hapax, que fazia música eletrônica – ou, segundo os próprios “afro-industrial”. Mas o Brasov tinha mais a ver com o tom geral dessa “sub-cena”: praticamente instrumental, antecipou a onda de brass-bands-eslavas-com-tempero-latino que viria depois do sucesso do Beirut e do Devendra Banhart, mas mesmo sem palavras fazia um som muito brincalhão e bem humorado. O líder da banda, Felipe Rocha, curiosamente é um ótimo cantor, além de trompetista – e ator. Seu irmão, Rafael Rocha, foi um dos fundadores do Binário e do Tono– além de já ter tocado com Cibelle, Moreno Veloso, Gal Costa, Adriana Calcanhotto e Jorge Mautner..



As bandas que passaram pelo CEP 20.000 são, de certo modo, privilegiadas no cenário cultural carioca. Além do coletivo reunir artistas importantes de várias gerações e de áreas diversas (e dentre eles a turma do Tropicalismo, atual vaca-sagrada da cultura brasileira), seu Quartel General no Humaitá (um espaço múltiplo: com exposições e peças de teatro) é freqüentado pela nata dos “formadores de opinião” da cidade. E a imprensa carioca (que hoje em dia resume-se ao jornal O Globo, em se tratando das classes A e B) está sempre de olho no que acontece lá – e também na Galeria Gentil Carioca, na Lapa, por exemplo, praticamente um posto avançado do Parque Lage.

E a PUC, talvez a universidade mais cara do Rio, é por onde passa a maior parte da alta burguesia carioca. O Festival de Primavera da PUC é volta e meia impressionante, com um grau de profissionalismo e atrações de renome (até Hermeto Paschoal!), como não se vê em qualquer outro festival universitário. Para ilustrar o que digo: o Los Hermanos nasceu lá.


Bem, alguns privilégios são inevitáveis. Por exemplo: é natural que as bandas formadas por jornalistas tenham, até certo ponto, acesso privilegiadoàs páginas dos jornais! Eu, que estudei jornalismo no campus da Praia Vermelha da UFRJ, vi o Pedrão, atual trompetista do aclamado B Negão & Seletores de Frequência, liderando uma banda muito maneira (e mais tradicionalmente roqueira), chamada Os Elétricos, em fins dos 90s. Seguiu-se uma série de bandas que elencaria entre as melhores em atividade durante os anos 2000: Os Netunos(de surf-music com toques de Weezer, com o escritor JP Cuenca na guitarra), Som Tomé (algo entre os Doors e os Stooges, de onde saiu caras que estão atualmente no Nome de Filme e The Albertos), Lasciva Lula (que gravou um disco sensacional, chamado “Mundo Crânio”, em 2008), Cabaret (glam´rock, com Márvio dos Santos, sujeito com tremenda presença de palco e treinamento em canto lírico!) e o lindo-de-morrer Casino (da jornalista e escritora Cecília Gianetti, que antes teve o delicioso combo indie 4-Track Valsa, na linha midsummer madness).



A FESTA LOUD & O GRUPO MATRIZ

Também nasceu no campus da Praia Vermelha da UFRJ uma das paradas de crucial importância para a cena roqueira dos últimos anos: a festa LOUD!, criada pelo Zé e pelo Gordinho – este último da banda Pelvs. O talento da dupla para a curadoria dos bons sons recebeu o apoio financeiro de outros dois estudantes, esses com tino pros negócios – Daniel Koslinski e Léo Feijó -, e a LOUD! acabou trocando o quintal do Diretório Estudantil pelo Cine Íris: um decadente-porém-ainda-charmoso casarão na região da Praça Tiradentes que de dia funciona como cinema pornô (incluindo shows de sexo ao vivo) e de madrugada recebe festas de arromba. No auge do sucesso a festa tinha 3 pistas, cybercafé e galeria de arte, e trazia bandas do calibre de Inocentes, Buzzcocks, Einstürzende Neubaten e Stereolab.

Mas o importante é frisar seu papel na consolidação da carreira de boas bandas ainda na ativa, como o Autoramas, Los Djangos, Bidê ou Balde, Júpiter Maçã, Wander Wildner, Pity e Cachorro Grande, entre outras. Das bandas que penduraram as chuteiras vale mencionar o Carbona, Sonic Júnior, Picassos Falsos e Video Hits.


Será que o poderoso Grupo Matriz seria o que é sem o impulso inicial dado pelo sucesso da LOUD? Primeiramente veio o bar Bukowski, em fins dos anos 90, na Rua Paulo Barreto, em Botafogo. Depois de um racha entre os sócios, o grupo dissidente criou a Casa da Matriz, que mudou de endereço e está até hoje na Rua Henrique Novaes, também em Botafogo (com espasmos esporádicos de engajamento na cena: o último foi a série de shows Matriz Live Sessions, rolando às terças-feiras). No auge da expansão do grupo, em meados dos anos 2000, eles chegaram a administrar 10 casas: Casa da Matriz, Pista 3, Albergue, Boteco Salvação, Cine Lapa, Choperia Brazuca, Cine Glória, Bar da Ladeira, Drinkeria Maldita e Teatro Odisséia – esse uma casa importantíssima, das poucas da cidade para bandas de “público médio” (pequenas demais para encarar um Circo Voador). (O Bukowiski ainda existe: é uma boate para trintões que gostam de rock, mas que citariam o Foo Fighters como a última novidade que os agradou.)

Esse circuito foi uma escola para muitos produtores que estão hoje por aí, organizando alguns dos eventos mais bacanas da cidade. Mas nos últimos anos o grupo parece ter tido dificuldades em “segurar” esses talentos: muitos debandaram para casas como o La Esquina (Lapa), o Espaço Acústica (Praça Tiradentes), Gafieira Elite (Campo de Santana) e Bar do B (Largo do Machado) - ou até para “velhas opções”, como a Casa Rosa (Laranjeiras) e a Fosfobox (Copacabana). Fato é que Léo Feijó foi, ao longo dos anos, mudando de rumos profissionais, e adentrando a política – primeiro trabalhando com economia criativa no governo do Estado e finalmente concorrendo à vereador, nas eleições (não entrou, mas tem trabalhado na prefeitura, em projetos como o Distrito Cultural do Flamengo / Catete / Glória).


Ah: nossa dupla de heróis Zé & Gordinho foi responsável ainda por outra festa referência para os roqueiros, e que deve ter durado mais de 1 década: a Maldita, voltada para a paixão de ambos: o indie rock a la Pixies, Teenage Fanclub, Pavement, Guided By Voices, Yo La Tengo & Cia. Zé também foi sócio da Rock´n´Drinks (onde rolaram altos shows, como o do Agent Orange, onde poguei como se não houvesse amanhã) mas depois largou de vez a música (pelo menos profissionalmente!). Já Gordinho segue com a Pelvs (que lança em média um disco a cada 5 anos) e colou num pessoal mais jovem (senão em idade, ao menos em “tempo de cena”), o Vinícius Leal e o Guilherme Almeida (ambos da excelente banda The John Candy) para criarem a festa Juvenilia, atual reduto dos fãs desse indie rock “de raiz” (à essa altura é isso: estamos velhos!). A Juvenilia tem acontecido no Saloon 79, em Botafogo.



Guia do Rock Underground Brasileiro, Parte 6 : Séc. XXI: possíveis hits para boates e para luaus (Vespeiro, College Rock Party, Indie Bean e o fenômeno Autoramas)

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Esse é um artigo colaborativo e "em construção", ou assim espero. Conto com sugestões, correções, acréscimos e refutações enviadas por eventuais leitores. Isso pode ser feito através dos comentários, ou você pode enviar um e-mail para baratosdaribeiro@gmail.com

E agradeço desde já por todos os pitacos.

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VESPEIRO, COLLEGE ROCK PARTY & INDIE BEAN: 
ROCK DE TUDO QUANDO É JEITO

A College Rock Party, atualmente hospedada no Bar do B, foi criada pelo Renato Lima, quadrinista que foi sócio do S. Lobo (outro quadrinista e editor, atualmente vivendo em Porto Alegre) na revista MOSH!, onde as HQs sempre tinham temática roqueira– além de trazer eventualmente artigos sobre as bandas. Para promover a revista eles organizaram muitos shows, em diversos locais, inclusive no Sebo Baratos da Ribeiro: foi assim que nasceu o Vespeiro, em 2004. Eu dividia a curadoria com Renato (e tanto Lobo como Fábio Lyra davam também as suas sugestões), mas o evento acabou criando autonomia com relação à MOSH! – o sebo sempre esteve á disposição dos músicos que conquistassem minha simpatia, e a primeiríssima banda a tocar lá foi o Zumbi do Mato, ainda em 2001, ano em que a livraria abriu as portas.


Acho que o momento mais glorioso do Vespeiro foi o festival Never Mind The Blocos, no carnaval de 2005. Foram 2 dias: no sábado as bandas incluíram, atendendo ao nosso pedido, versões para Beatles e Mutantes. Tocaram Pra Servirem de Espantalhos, Elepê (que tinha a Flávia, atual Autoramas, no baixo), Pic Nic (que tinha uma ótima cantora, a Guidi Vieira, que o rock perdeu pra MPB tradicional) e Jesse Saes (que havia acabado de abrir pro Hurtmold, e tinha um ex-Second Come na formação). No domingo as versões foram de Rolling Stones e Roberto & Erasmo, e as bandas escaladas foram Cactus Cream, Os Imperfeitos (fazendo sua estréia pública! Fábio Caldeira hoje tem o Latéxxx), Nelson & Os Gonçalves (uma fantástica e sui generis banda, que faz algo como Ramones + Santana + Deep Purple) e Charme Chulo (banda de Curitiba que misturava viola caipira a um som meio The Smiths).



2005 foi o ano mais movimentado do sebo, em termos de rock´n´roll: foram 20 sábados e 63 bandas diferentes, ao todo. Mas não dá pra esquecer dos shows surpresa do Cachorro Grande, em 2007: 3 horas interruptas de jam (a cada uma das 2 apresentações!) com dezenas de roqueiros espremidos entre os livros e outras centenas espalhados pela calçada em frente - e direito à canja do Lobão!.



Àquela altura havia uma cena muito interessante de bandas revisitando os anos 60, tanto no som como no visual. A mais bem sucedida delas, comercialmente, era o Cachorro Grande, ponta de lança de uma onda neo-mod. Outras ótimas bandas que estavam usando terninhos & bonés demodês, e usando fotos de lambretas em seus cartazes e encartes de CDs, e dentre eles estavam o Laboratório SP, Relespública (PR), Rock Rocket (SP), Faichecleres (Curitiba, das melhores, muito esporrenta ao vivo), Vera Loca (a minha predileta, de Santa Maria - RS), os Substitutes e PB (acho que ambas de SP). No Rio a bandeira era defendida por Os Imperfeitos, Doidivinas (outra banda da Flávia do Autoramas), Retrovisores (gerando Beach Combers, Mykonos Flame e Kao & The Magic Machina), Coupê Mal Assombrado (gerando Os Azuis) e The Go-Splash (mezzo-indie, gerando Bambino & Os Asteróides). O Éder Piazza, aliás, primeiro vocalista de Os Imperfeitos, atualmente lidera o Éder & Seus Problemas, bandas cuja base do repertório são versões para Dr. Feelgood – só mesmo vivendo numa cidade roqueira como Curitiba!


Minha intuição tilinta, me dizendo que essa onda deve ter raízes em alguma explosão de bandas inglesas ou americanas, nessa linha, uns anos antes. Mas nada me vem à mente: e de todo modo o rock gaúcho (e proximidades), sempre se desenvolveu de forma relativamente autônoma com relação aos modismos do eixo Rio-São Paulo, e sempre cultivou a paixão pelos ícones da Primeira Invasão Inglesa, desde os Garotos da Rua (83-89) e Cascavalletes (85-92), e também no trabalho de Júpiter Maçã(ex-Cascavalletes) e de Frank Jorge (ex-Graforréia Xilarmônica), caras que ainda estão por aí, e em ótima forma.

Além da vertente mod, os anos 60 começaram a ser revisitados por bandas mais inspiradas pela Jovem Guarda (só que numa versão bem mais turbunada e sarcástica): The Feitos (RJ), Arthur Jolly (SP), Sapatos Bicolores (Goiânia), Rockassetes (Aracajú – SE), Los Canos (Salvador – BA), Fuzzcas (RJ) e Marcelo Mendes & Os Bacanas (algum lugar do Sul), Criaturas (Curitiba), Rádio de Outono (Recife) e The Playboys (Recife). Uma turma que faz um som muito bem humorado e empolgante. Com esse revisionismo em comum, mas puxando mais pro tropicalismo, temos o Garotas Suecas (SP), e numa direção mas psicodélica o Mopho (Maceió – AL). Tá praticamente todo mundo na ativa ainda. Mas eu, particularmente, acho que o melhor disco de Jovem Guarda gravado nos últimos anos é “Bom Retiro”, trabalho solo de 2012 do Mauro Motoki (da banda Ludov). (Se bem que o recém lançado “Desapego”, do recifense Juvenil Silva, me impressionou muito.... uma versão “velvet underground” da Jovem Guarda!)


E há uma outra vertente mais garageira, cujo principal nome é Os Haxixins, que o selo português Groovie Records tem lançado na Europa, em vinil – o que rendeu algumas turnês dignas dos mais bandidos & junkies roteiros que se poderia imaginar pruma banda de rock. Essa turma não é apenas mal encarada. Eles são de uma das regiões mais barra pesadas de São Paulo, e não estão blefando.

O FuzzFaces, outra banda garageira-de-raiz e de peso, também é da Zona Leste paulistana.



É mais fácil rastrear a fonte dessa maravilhosa explosão criativa por aqui mesmo: houve o fenomenal Thee Butcher´s Orquestra (que chegou a lançar um LP pelo selo suíço Voodoo Rhythms, um puta dum selo de garantia em se tratando de garage rock), de onde saíram o Adriano Cintra (idealizador do Cansei de Ser Sexy, injustamente mal recebido pelos roqueiros tipiniquins, e atualmente no duo Madrid) e  Jonas Morbach: criador do estúdio e clube Berlin (uma referência pros garageiros) e atualmente á frente dos The Black Needles. Houve também o Forgotten Boys, com um rock mais “stoniano”, mas também mais radiofônico, menos nervoso.

Apenas alguns meses depois do Butcher´s começar seus ensaios, outra bandas seria fundada, e mudaria para sempre a história do rock brasileiro.


Autoramas foi o nome escolhido por 3 figuras que já eram estrelas do rock underground: Gabriel Thomaz (ex-Little Quail & The Mad Birds), Bacalhau (ex-Planet Hemp) e Simone (ex-Dash). Rapidamente eles criaram uma forte assinatura sonora, que eu arrisco descrever como timbres de guitarra da garageira / surf, temáticas da neo-Jovem-Guarda e uma cozinha simpática ao rock alternativo contemporâneo. Uma combinação imbatível, que somada à veia diplomática / articuladora de Gabriel, e à disposição de seus companheiros para suar a camisa, permitiu uma inserção incrível da banda no circuito alternativo mundial. Nenhuma banda brasileiras perambula tanto pela Europa, Japão e América Latina (foram os primeiros brasileiros convidados para o Viva Latino, meio festival do México, e dos maiores do continente: será da edição de 2014). Em 16 anos de carreira o trio lançou 5 álbuns de inéditas em estúdio, 1 unplugged pela MTV, 2 DVDs, 1 coletânea de b-sides e raridades, 1 split em vinil 12”, vários compactos em vinil e 2 coletâneas exclusivas para a gringolândia (um para o mercado japonês e outro para o argentino), além de terem gravado um EP em parceria com B Negão, há poucos meses. Não tem mistério. A receita é trabalho incessante: novidades constantes para manter os fãs atentos, muita troca de figurinha com outras bandas (devolvendo convites e distribuindo discos), turnês aventureiras por lugares insólitos e shows, muitos shows, onde que o público esteja.




E se algo podia ser usado contra o Autoramas, já não há. A atual baixista, Flávia Couri, é uma musicista fenomenal e sua segunda-voz abriu um novo horizonte de possibilidades para o trio. E a performance vocal do Gabriel, que compreensivelmente não era uma unanimidade, com o último álbum (“Música Crocante”) alcançou um novo patamar de excelência. O mais importante ele já tinha desde o início: compõe bem pra diabo.


Tudo isso está aqui porque a College Rock Party, ainda que nunca tenha tido o orçamento que tinha a LOUD!, partilhava do mesmo espírito de ser uma “vitrine” para TODA a cena - sem privilegiar qualquer vertente – e com uma gigantesca fé, implícita no discurso de seus produtores, de que o rock´n´roll podia interessar ao grande público.Independente de estarem recebendo 150 ou 3 mil pessoas, esses produtores tratavam seus artistas como popstars de primeira grandeza – tanto quando escreviam o release para a imprensa, como quando serviam os petiscos no backstage.

E por isso acabou sendo o circuito que melhor acolheu bandas mais comerciais, daquelas que bastaria alguma EMI ou Sony da vida estalar os dedos, e elas teriam estourado nas rádios. Excelentes bandas que estavam sintonizadas com o que a EMI e a Sony estavam vendendo, em termos de rock inglês e norte-americano! No rastro do sucesso de Strokes, Bloc Party, Killers, Coldplay, Franz Ferdinand & Cia surgiram as cariocasMop Top (que abriram show do Placebo, Oasis, Interpol e Magic Numbers), Columbia, Rockz (com o Gabriel Muzak, ex-Funk Funkers), Tapete Red  e Alice. Na mesma linha, São Paulo teve o Gram e o Ludov, e Belo Horizonte teve o Monno.(Uma ótima banda com essa sonoridade, e que teve existência relâmpago, ao apagar das luzes da primeira década desse novo século, foi o Volantes, de Porto Alegre.) Apesar dessa “fornada” de bandas já ter “mofado” – acabaram todas -, a turma inspirada pelos Artic Monkeys segue firme e forte, como o Cartolas (Porto Alegre), Vivendo do Ócio (Salvador – BA), Esperanza (de Curitiba, que lançou 2 ótimo discos enquanto ainda se chamavam Sabonetes) e a recém chegada Selvagens À Procura de Lei (incrível banda de Fortaleza, Ceará).


E quanto à última “explosão hipster”? Quanto àquelas bandas como Passion Pit, Cut / Copy, Foster The People, Friedly Fires & Cia? Não possuem discípulos dentre os brasileiros? Sendo um som que rapidamente me cansou, não apontei meu “radar” nesta direção. Mas me deparei por acidente com o single “sandau”, da banda Teresa, e depois de ver um show no Circo Voador fui convertido: os garotos de Niterói são ótimos! São boas canções, mesmo quando tolas, uma performance de palco divertidíssima e o instrumental empolga. E há uma banda que fica no meio do caminho entre esse “indie” eletrônico e o shoegazer, que é a excelente Cambriana (Goiânia). Mas há duas bandas que vão além, e fazem algo em sintonia com o esse pop-sintetizado-pseudo-experimental que está na moda, mas salpicando seu som com fortes influências brasileiras (principalmente no aspecto melódico e harmônico) que são o Biltre (RJ) e o SILVA (do Espírito Santo). Ambos são espetaculares.



Mas a banda atual em que eu apostaria todas as minhas fichas, se tivesse que jogar tudo numa só, é o Vespas Mandarinas, banda fundada por Chuck Hipólitho (ex-Forgotten Boys) e por Thadeu Meneguini, cantor, guitarrista e compositor incrivelmente talentoso, que nunca errou a mão: lançou 2 discos com a banda Banzé (e neles gravou duetos com Nasi, do Ira!, e com Wayne Kramer, do MC5) e depois transformou as “férias-com-os-amigos-no-estúdio” no 10” em vinil colorido “Conjunto Vazio” (com participação de feras como o Tatá Aeroplano, Jards Macalé, Wado e Rónei Jorge), antes de se dedicar a resgatar os melhores elementos do rock brasileiros dos anos 80, e reorganizá-los sob uma nova e instigante perspectiva, no álbum “Animal Nacional”, lançado pela Deck Discos no ano passado.


Voltando à cena carioca, vale mencionar outras boas bandas de sonoridades variadas, que atuaram em meados dos anos 2000: Manacá, El Efecto, Hereges, Cafê Funquê, Noitibó (das minhas prediletas), Marte, Almeida Prado 46 (que virou o Jogo do Bixo) e Ismália. E isso me remete á bandas de alhures, que sumiram da minha vista: Os Telepatas, Jumbo Elektro, Vermelho 40, Gramofocas, Gardenáis, Los Pirata, Drosófila, Biônica e Zefirina Bomba (de João Pessoa, na Paraíba, e responsável pelo melhor grunge já feito no Brasil, na linha do Mudhoney, só que mais nervoso). Gostava muito do Daniel Belleza & Os Corações em Fúria, mas me parece que o híbrido de Marc Bolan & Billy Corgan resolveu em 2013 se dedicar à sua antiga banda, Os Caça-Níqueis – sensação no circuito de motoclubes!

Seguem na luta: Gametas, Habitantes, Nelson & Os Gonçalves, Gilber T, Madame Machado e Los Djangos(as duas últimas, somadas á paulista Firebug, basicamente esgota o que conheço do ska brasileiro contemporâneo). Além de Les Pops e Cabeza de Panda– bandas incríveis, mas que infelizmente tem pouco espaço na agenda de seus integrantes, músicos que acompanham grandes nomes da MPB, trabalham em estúdios ou se dedicam prioritariamente ao cinema.



Todas essas bandas tocaram no Vespeiro, na LOUD! ou na College. Já nos tempos de MOSH! (e do seu filhote Jukebox, que teve apenas 2 edições), Renato organizava eventos em diversas casas (e houve uma noite histórica no Ballroom, casa importante do Humaitá, já substituída por um edifício residencial, em que uma all-star-band foi criada para tocar Pixies, consolando quem não pôde ir ao show em Curitiba), incluindo o Cinemathéque (já extinto, também do Grupo Matriz) e o Teatro Odisséia. E foi o casarão da Lapa que abrigou a College Rock Party, quando a massa de roqueiros já não cabia no modesto Cine Lapa.

O que diferencia a College de outras festas de sucesso que tocam rock é a insistência do Renato em incluir bandas entre as atrações, apesar do bizarro desinteresse do público– que vive buzinando em seu ouvido, reclamando que os shows interrompem os DJs! Mesmo festas criadas por músicos, como a Yellow Submarine, do Júnior Du Jorge e do Cícero (ex-Alice), diante da necessidade de cortar custos e maximizar lucros optaram por não promover shows e investir em lances como cobertura fotográfica profissional, vídeos promocionais estilosos e decoração extravagante. O caso mais intrigante é o da banda R Sigma (do Tomás Tróia e turma), que apesar de ter sido convidada pelo Festival South By Southwest para excursionar nos EUA, acabou debandando porque as festas que seus integrantes criaram (Helvética, por exemplo) com o objetivo de financiar as atividades da banda acabaram fazendo deles DJs ou fotógrafos popstars no circuito noturno!

Mas não na College: por mais que seus DJs ganhem notoriedade (como o talentoso Arlei Hey-Hey) e estrelas de primeira grandeza estejam no line-up (como o Edinho, Mamede, Fester ou Tito), o evento nunca perde de vista que a divulgação das boas bandas autorais é o objetivo mais nobre a ser alcançado.

(Um dos filhotes da College é a Rockeadores, festa criada em Realengo, na Zona Norte, num puteiro – que nos dias de rock dava folga pras suas meninas – e que chegou a reunir 700 roqueiros numa só noite! Além de promover shows.)


Esse mesmo espírito otimista, agregador e plural marcou o último grande mutirão em prol do rock´n´roll autoral no Rio de Janeiro: a festa INDIE BEAN– provavelmente porque seus curadores eram Léo Senna e Jeff Rodrigues, da banda Habitantes (que entrou pro primeiro time depois de recrutarem Juhnior Luiz, ex-Cactus Cream), e caras de bandas obedecem àquele conselho bíblico do “não julgueis e não serás julgado”. Mas mesmo com o coração de mãe, aberto à todo caboclo com uma banda nas costas, eles tinham um faro incrível e o que se viu foi um desfile do que havia de mais interessante rolando na cidade!

A entrada era uma bagatela (5 mangos!), a cerveja era barata, o lugar era tosco, o equipamento de som era sofrível, os produtores eram uns amores e a DJ residente e musa, Carol Tristão, era uma menina de Bangu (extremo oeste do subúrbio) que tocava com um puta tesão umas canções fodaraças de bandas que só os mais espertos conheciam. Em poucas semanas já estava todo mundo indo pra lá, sem ligar pra banda escalada, confiante no bom gosto de Léo e Jeff, pra desfrutar do alto astral do lugar.


A Indie Bean começou em meados de 2012 e infelizmente foi interrompida no início de 2013, quando o acidente na boate Kiss (em Santa Maria, RS, que matou centenas) deu início à uma verdadeira “caça às bruxas” por todo o país. Até o Cine Jóia, de apenas 87 lugares, foi fechado por “questões de segurança”– além de 9 bibliotecas públicas cariocas!


Do que vi na Indie Bean, duas bandas me impressionaram mais: Os Tangarás e O Padre dos Balões - a última com uma forte dose de brasilidade no som: percussa esperta, bom humor e com um naipe de sopros cheios de ginga.


O ROCK PRAIANO

Afinal, o Rio de Janeiro é um balneário. Para o bem e para o mal.
É de se supor que os paulistas se vistam de preto e escrevam canções tristonhas.
Mas o carioca pode sempre correr pra praia, se precisar recarregar suas baterias espirituais.

Nessa onda surf-luau-açaí-hippie-colorida podemos incluir algumas grandes bandas, como o Sobrado 112, Tijuquera e Os Supernaturais– além do Penna Firme, um sambista que faz muito bonito quando, ocasionalmente, se aventura pelo rock. São bandas que poderiam, em termos mercadológicos, avançar pela trilha aberta por Móveis Coloniais de Acaju (Brasília), Mombojó(Recife), B Negão & Os Seletores de Frequência (RJ), Bixiga 70 (SP), Eddie(Recife), Cidadão Instigado (CE) e Tulipa Ruiz (SP) – todos artistas com um background rocker, mas que conseguiram ser aceitos no circuito da MPB mais liberal e cosmopolita.




E tem uma turma mais nep-tropicalista, mas com rock suficiente no DNA para freqüentar festivais do gênero, que deve despontar em breve, como o Feiticeiro Julião (esse um cara que curte o fuzz!) e o Tibério Azul (ambos de Recife), Odegrau e Trupe Chá de Boldo, além de e uma turma de Belo Horizonte, com muitas afinidades sonoras: Graveola & O Lixo Polifônico e Gustavito, em especial.



Há uns 10 anos essa seara sonora incluiria a Formidável Família Musical, Samambaia Dance Club, Stereo Maracanã, Bonsucesso Samba Club, Lado 2 Estéreo, Sonic Júnior, Tchucbandionis e Ultraman (Porto Alegre, banda do Tonho Croco, que com seu último disco, “O lado brilhante da Lua”, provou ser o melhor cantor de soul brasileiro desde Tim Maia). Todos altamente recomendáveis.


Guia do Rock Underground Brasileiro, Parte 7 : Séc. XXI: Rockabilly & afins, Bandas Instrumentais e a cena Low-Fi / Shoegazer

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Esse é um artigo colaborativo e "em construção", ou assim espero. Conto com sugestões, correções, acréscimos e refutações enviadas por eventuais leitores. Isso pode ser feito através dos comentários, ou você pode enviar um e-mail para baratosdaribeiro@gmail.com

E agradeço desde já por todos os pitacos.

# # #


SALOON 79:

Comecei esse passeio pelo rock carioca do séc. XXI comentando os lugares onde se concentram estilos bem definidos e “tradicionalistas” como o classic rock, o heavy metal e o punk / hardcore. Ninguém sentiu falta do Rockabilly?



O Saloon 79 (na Rua Pinheiro Guimarães, em Botafogo) era um bar estiloso, mas com programação meio irregular (com muitas noites de bandas covers), até que o Tony Rocker assumiu as rédeas. Além de ter estado á frente da banda General Billy, Tony foi o criador do festival (e depois festa) Riobilly, que trouxe para o Rio bandas importantes do estilo, como The Quakes (EUA), Run Devil Run (SP) e Hillbilly Rawride (de Curitiba, há décadas a Meca brasileira do rockabilly e psychobilly). Foi lá também que conferi a fantástica Los Primitivos, da Argentina.


Maurício Garcia é peça chave da cena topetuda. Além de ser o fundador da mais longeva banda carioca do gênero, A Grande Trepada (ou simplesmente Big Trep), com mais de 20 anos de estrada, Mauk se apresenta acompanhado de Os Cadillacs Malditos e de outros feras, como o Leandro Carburator – que acabou fundando seu próprio combo, Os Carburadores. Acrescente á turma o DJ Theddy e formou-se a diretoria do rockabilly / psychobilly local.


Se o Rio de Janeiro tivesse um mercado roqueiro forte, talvez Mauk só tivesse o rockabilly em seu currículo. Mas a turma roqueira alternativa daqui foi sempre uma patota de meia dúzia... (Tanto que Skunk, futuro fundador do Planet Hemp, chegou a tocar nos primórdios do Big Trep, por volta de 1986, e até compôs 3 canções pra banda: “Sonhei com Você”, “Homem Aranha” e “Alessandro Cresce”!) Mauk sempre se aventurou por outras praias onde sua guitarra pudesse uivar alto: sua formação musical vem do punk e new wave. Tanto que integrou Os Esquizóides, Lunik 9, Ricardo & Os Caras Que Não Tem Amigos, Manguaça e atualmente ele é guitarrista da excelente Oort Clouds, de pós-post-punk – do Francisco Kraus, ex-Second Come.


A programação do Saloon 79 tem shows e festas de rock em geral, não apenas dos “billies” da vida. Mas vejo o terreno especialmente fértil para duas vertentes relacionadas às raízes do rock´n´roll.

A turma que curte uma “arqueologia musical” anda trocando as tradicionais guitarras elétricas por ukelelês, washboards, tubas, violinos e outras peças de museu. A primeira banda de destaque nessa onda foi a Uisqueletos Extravaganza Orquestra (formadas por caras egressos do psychobilly, punk e saravá metal!), que nasceu com a proposta de tocar apenas na rua e sem amplificação alguma. 


Eduardo Villa-Maior, primo de Mauk e outro fundador da Big Trep, depois de décadas aprimorando suas (maravilhosas) técnicas no contrabaixo acústico (emprestadas à primeira formação do Canastra) resolveu tocar tuba e fundou o Digga Digga Duo– que às vezes se apresenta como quarteto, acrescido de guitarra e safoxone. Edu também formou o Cisco Trio, mais nessa linha. É a turma que anda empolgada com o jazz da velha New Orleans, com o blues rural do Delta do Mississipi e com a música dos cabarés parisienses da década de 20.



Recentemente conheci lá o Klaus Koti, músico e artista plástico curitibano que no álbum “O Chamado dos Espíritos” (2013) também incursionou pelo Delta do Mississipi imaginário – só que na sua versão rednecks do pântano & bruxas-vudu & fantasmas de soldados confederados mortos. (Koti liderou também a banda Os Penitentes, cuja música ecoa um bar decadente num porto frio e tomado pelo nevoeiro, onde Tom Waits tocaria piano enquanto os bêbados afogam suas mágoas no uísque. Curitiba parece alimentar viagens sonoras desse tipo: Renato Godá também lançou um ótimo disco nesse embalo, o “Canções Para Embalar Marujos”.)


Só que naquela noite ele estava incorporando o Lendário Chucrobillyman– um garageiro e ruidoso one-man-band, tão selvagem quanto genial. 

Estranho é que nunca tenha ouvido elogios ao Vanguart, nas minhas idas ao Saloon. Não há nada mais faroeste & brasileiro do que as fazendas da região pantaneira, cortadas por estradas freqüentadas por contrabandistas paraguaios, com puteiros vagabundos pelo caminho, onde a vida pode valer um uísque falsificado. A banda de Cuiabá não investe em narrativas são sombrias (pelo contrário: seu forte são as canções de amor), mas em termos musicais eles estão muito próximos do folk, com violinos e gaitas na receita. Talvez o erro do Vanguart tenha sido acompanhar Mallu Magalhães (namorada de Marcelo Camelo, ex-Los Hermanos) em seus primeiros discos...


Mas acho que o Facção Caipira vai fazer sucesso por lá. Os rapazes de Niterói fazem uma excelente fusão de blues de Chicago e rock sulista, com uma formação sui generis: bateria, baixo, violão de nylon e gaita (e o cara não canta nem toca guitarra: só toca a gaita!). Lobos totalmente solitários: não entendo como puderam se achar nesse mundão, mas agradeço aos deuses do rock por isso!  Ademais só vejo hoje 2 caras fazendo algo tão próximo do country-rock sulista: Tor Tauil (do Zumbis do Espaço, em trabalho solo) e Caio Corsalette & Dóllar Furado. Para fã nenhum de Johnny Cash botar defeito.


Além da vertente “sulista de raiz”, o templo rockabilly tem recebido grandes bandas de rock instrumental, que no geral bebem na surf music e no rock garageiro proto-punk dos anos 60 – com eventuais pitadas de Jovem Guarda.

Os Vulcânicos e Os Beach Combers (egressos dos Retrovisores, da onda neo-mod) são os principais expoentes cariocas do gênero, e uma combinação das duas deu origem ao Astro Venga.


Por mais louco que pareça, encontrar um circuito onde tocar pode ser hoje mais fácil para uma banda de rock instrumental do que para uma banda tradicional! Posso imaginar alguns motivos, mas apenas enquanto hipóteses: 1) a música soa mais familiar para os coroas (a Jovem Guarda teve muitas bandas instrumentais); 2) a música soa mais radicalmente roqueira para a turma mais xiita (como headbangers e punks); 3) a virtuosismo dos instrumentistas agrada aos não roqueiros que gostam, por exemplo, de jazz; 4) essas bandas conseguem facilmente armar shows em praças (amplificar e equalizar voz é sempre mais complicado); 5) essas bandas são normalmente trios e fica mais barato excursionar; 6) produtores de grandes festivais, como o Fabrício Nobre (de Goiânia) e o Fernando Rosa (o Senhor F, de Porto Alegre) estão interessados nesse som.


Tanto que surgiram nos últimos anos grandes bandas brasileiras de rock instrumental: Macaco Bong(Goiânia), The Tosco Dudes (Londrina – PR), Mahatma Gangue (Mossoró – RN), Retrofoguetes (Salvador – BA), Sala Especial (SP) e Pata de Elefante (de Porto Alegre, a minha predileta). E vale citar ainda Caldo de Piaba (Rio Branco, no Acre) e Burro Morto (João Pessoa – PB), ambos mais experimentais, numa direção “Hurtmold”.


Os Vulcânicos e os Beach Combers estão tão escaldados com a experiência de tocar pelas esquinas do Rio (sem tomadas à vista e sujeitos à chuva, guardas municipais, cracudos, ônibus desgovernados e outros imprevistos)  que não se incomodam nem de tocar no ainda mais precário Sinuca Tico Taco, na Lapa. É inacreditável que o carcomido casarão ainda não tenha desabado, mas a cerveja é barata, não tem couvert artístico e fica num pedaço particularmente abandonado, entre a Lapa e a Glória, e tudo isso parece soar convidativo pra uma molecada que curte emoções fortes, além de rock´n´roll.Outras boas bandas costumam tocar lá são a Sala do Sino, o Paul Serran Trio, o Sex Noise e o Ênio & A Nóia (liderado por um excelente compositor quase cinqüentão, que é meio que um guru pra toda essa turma, com quem vara as madrugadas falando de filosofia e indicando que LPs escutar). Outro ponto de encontro dessa rapaziada é o Coletivo (e estúdio) Machina, também na Lapa, fundado por alguns desses músicos.



UM VULCÃO PRESTES A ENTRAR EM ERUPÇÃO:
A TRANSFUSÃO RECORDS.
FUTURO DO ROCK CARIOCA?

Bem que eu gostaria. O mais provável, porém, é que o selo fundado em Vilar dos Teles por Lê Almeida seja lembrado, daqui a 20 anos, não como um grande negócio que salvou a indústria, mas como um prolífico celeiro de geniais e influentes bandas, ainda que eternamente obscuras. Como é o caso da midsummer madness do Rodrigo Lariú, a quem Lê deve sua formação musical– e o apadrinhamento em seus primeiros “passos firmes” (ele já gravava discos, mas muito mal e porcamente).


Lê vai reclamar comigo que aquilo era low-fi e eu é que não entendi. Bem, eu retrucaria botando pra tocar os maravilhosos discos do Suíte Parque e do Carpete Florido, e depois os compararia com os primeiros CD-Rs que ele me deu, poucos anos atrás. O salto de qualidade é gritante.


O que não mudou é o talento dessa turma para escrever canções com melodias deliciosas, riffs poderosos e ótimas letras (às vezes sobre temas inusitados, como uma bicicleta ou uma calça jeans!), tudo isso no meio de MUITA distorção e timbres estranhos. (Mas se podem haver 4 guitarras sobrepostas, também pode rolar só um violão conectado à 14 pedais, como no caso do folk psicodélico do Wallace Costa.)


São uns 20 caras que, graças à diversas combinações, criaram umas 58 bandas diferentes.É o seguinte: Fulano, Siclano e Beltrano tem juntos 3 bandas. “Sapatos” é pra tocar as composições de Fulano, “Casaco” é pra tocar as do Siclano, e se o Beltrano cantar eles se apresentam como “Guarda Chuva”. Mas se de repente o baterista trocar de lugar com o bateristas, eles anunciam a criação do “Chuva Ácida”. E se um dia resolveram versar as canções do Chuva Ácida pro inglês e acrescentarem sintetizadores, aí nasce o “Acid Nights”.  E como eles são low-fi, e isso pode significar gravar na mais adversa situação, conseguem lançar um disco novo todo mês!

Em outras palavras: é uma coisa maravilhosa finalmente acontecendo na cidade!



Algumas das bandas: LuvBugs, Fujimo, Cretina, Bad Rec Project, Badhoney, Extra Sopro Em Seu Envenenamento Desafinador, Babe Florida, Top Surprise, Loomer, Electric Lo-Fi Orchestra, Novadelic, Tape Rec, Uma Nova Orquídea Em Meu Jardim Alucinógeno, Treli Feli Repi, Flowed,Sin Ayuda,  Looking for Jenny, The Fashion Our Club, Aroflogilo Pai, Hierofante Púrpura, Trash Nostar e Gaax, além dos já citados Suíte Parque e Carpete Florido – e dos discos solo de Lê Almeida.


Estamos falando de indie rock, no sentido 90s do termo. E outra banda que pode conquistar um novo público para o gênero é a DRIVIN´ MUSIC, idealizada pelo talentosíssimo compositor Fábio Andrade, da aclamada banda de hardcore The Invisibles (do interior fluminense). Os primeiros lançamentos do Drivin´ Music (um EP, “Noite Americana”, e um álbum, “Comic Sans”) foram inteiramente gravados e mixados por Fábio, que continua cantando em inglês, mas agora trabalha a partir de outras influências: Jawbreaker, Face to Face, Sugar, Pixies, Paul Westerberg e Bruce Springsteen - segundo ele mesmo, em entrevista ao site punknet.


Só que agora o Drivin´ Music é uma all-star-band. Acompanham o Fábio: Melvin (ex-Carbona), Gordinho (Pelvs), Gustavo Matos (ex-Cabaret) e Daniel Develly (Pelvs). Aguardo ansiosamente pela chance de vê-los ao vivo!

E para terminar, listo aqui ótimas bandas que soam como se fossem da Transfusão ou da midsummer madness:

Medialunas (Porto Alegre, egressa do Superguidis), Churrus (MG), Nocturno (RJ), The Albertos, Destruidores de Tóquio (Belém do Pará), Márcio Abbes (RJ), The Concept (SP), Laura Palmer (RJ), Cassim & Barbária (Florianópolis – SC), Luneta Mágica (Manaus), Pullovers (SP, do Luiz Venâncio, que era o frontman, único compositor, arranjador e membro fixo, e que agora não finge mais ter uma “banda”), Mr. Spaceman (projero paralelo do Régis Damasceno, do Cidadão Instigado) e The Gilbertos (do Thomas Pappon, ex-Fellini),


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No último domingo (1/2/14) eu e minha esposa, a Bia, fizemos uma grande descoberta no evento Agaquês, organizado pelo Renato Lima (da College Rock Party) no Sobrado Boêmia (do Grisalho, agitador de peso já fez uma década, pelo menos), na Praça São Salvador: a ótima banda iO, formada por Felipe Melo, Pedro Coquin, Rodrigo Abud e Paulo Vítor Grossi - os dois últimos foram do Alice.

Novamente o rock´n´roll vem da periferia carioca: todos eles são de Santa Cruz, extremo oeste da cidade. Me lembrou o Violins (de Goiânia), pelo peso, pela inclinação ao instrumental (as melhores canções são as que quase não tem letra)... Ah, nesse sentido do peso dá pra relacionar ao Elma, de SP – instrumental e com os 2 pés no metal, por mais que seja um metal "esquisito". Na real os caras do iO de cara me falaram que faziam "death / grindmetal", mas acho q estavam tirando com a minha cara.... De todo modo dá pra dizer isso, no mesmo sentido que dá pra dizer que o Fugazi fazia hardcore. (Só que apesar deles serem "da cena", não era bem isso.) Sempre gostei de bandas difíceis de se classificar: uma das melhores canções foi um blues, chamado "blue", que me soou como o Pink Floyd da época do Syd Barret numa versão Dave Grohl. E apesar dos 2 guitarristas serem igualmente ótimos, o Paulo Vitor volta de meia se destacava com uns belos dedilhados "indies", na onda do Pelvs. Virtuosismo + peso + lirismo, como no caso do Dinosaur Jr... Sem perder uma pegada "metal", mas do mesmo jeito que o Smashing Pumpkins tinha, em certos momentos. 



Enfim, música é pra se ouvir, e não pra se ler.

E meu esforço é apenas para atiçar sua curiosidade.
Daqui pra frente é contigo: corre atrás e escute essas canções e discos incríveis!

> Câmbio final <

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Meus agradecimentos a você e aos meus outros dois ou três amigos que tiveram fôlego para chegar até aqui! Hoje em dia textos longos parecem quase uma ofensa, pra muita gente!

Agradeço imensamente aos amigos a quem pedi socorro, e que me enviaram informações importantes para esta pesquisa:

André Luiz Costa (da Cult FM), Mariano (colecionador mineiro de discos de vinil), Renato Lima (da Collee Rock Party), DJ Edinho (lenda viva, é do Kongo e começou no Crepúsculo de Cubatão), Flávio Rafael, Rodrigo Chagas (da banda The Honkers), João Maizena (DJ da pista vinil do Bukowiski, guitarrista do Maria Tontêra), Johnny (da banda Toatoa), Paulo Metello (ex-Cactus Cream, atual Nome de Filme), Vital Cavalcante (ex-Poindexter, criador da fanpage 90under no facebook, dedicada à memória da cena alternativa dessa época), Marcelo Spíndola Bacha (do selo Editio Princeps), entre tantos que agora me escapam da memória.



E em especial ao Fábio Caldeira (jornalista e produtor, ex-Imperfeitos e atual Latéxxx) e ao ao Hélio Jorge (frontman do Wilbor e professor de Artes Plásticas), que me enviaram textos longos e fartos de informação! Fecho essa exaustiva pesquisa com um depoimento do Hélio:


“Agora, entre nós, uma opinião minha: Muita banda aí precisava ter tocado na grande mídia, Mauricio. Ao contrário do que prega alguns radicais, eu acho que um mainstream capaz de catapultar bandas para grandes platéias é importante. Você listou muita gente desconhecida com bons trabalhos - é um pecado o povo ouvir apenas essas merdas que rolam por aí. Nem só de internet se escreve a memória afetiva de nossas vidas.”


Wander Wildner, Padre Fred, Bruce Springsteen e Maharaja Chandramukha

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Há algumas horas eu subia a Rua Siqueira Campos, em direção ao metrô, depois de encerrar mais um dia de labuta no sebo. Via de regra eu me encontro num dos três estados: 1) exausto, se o dia foi de muita correria; 2) apressado, se marquei compromisso para a noite (e neste caso estou meia hora atraso); ou 3) com a cabeça à mil, organizando mentalmente as tarefas do dia seguinte, ou as pendências que me farão ficar até tarde diante do computador.

Mas hoje foi diferente. Não sei dizer se era felicidade, porque à essa altura do campeonato o conceito já se tornou tão complexo & espinhudo que evitá-lo me parece uma das poucas táticas seguras para alcançá-la. Mas fato é que caminhava com uma lentidão atípica, e não era por qualquer cansaço físico ou pé torcido. Matutei um tiquinho sobre aquele andar de agente-do-MI6-em-missão-de-campo, e percebi que se tratava de serenidade. E não estou falando de endorfina, mas daquele misto de satisfação com o presente, paz com o passado e otimismo com o futuro, que parece nos permitir pairar acima do chão: olhar para as manchetes do jornal, ou para as contas em cima da mesa, ou para os recados na caixa de entrada do email, ou para o semblante das pessoas á volta, e sentir-se desobrigado de envolver-se naquilo. Como se realmente estivéssemos fora do alcance dessas mundanidades.

Que acontecimento poderia ter me proporcionado tal estado de espírito? Bem, o final de semana foi bastante divertido... Incluindo o aniversário da minha esposa. Mas acho que devo muito ao Wander Wildner.

No sábado (8/2/14) o roqueiro gaúcho fez uma inesquecível apresentação na Baratos da Ribeiro, entupida de gente comovida e gastando os pulmões num comovente coro. Então cá estou, 57 horas depois, recorrendo à escrita no esforço de encerrar dentro de mim o show. Porque a vida precisa seguir adiante.


E por mais desagradável que seja admitir, o tempo que cada experiência exige de nós, se a queremos plenamente, escapa ao nosso controle. Não podemos prever quanto tempo uma paixão vai tomar de nós, como não podemos ligar o cronometro quando um amigo está se confidenciando, do mesmo modo que um LP insuspeito pode despertar uma curiosidade que levará semanas, ou meses, para se esgotar.

Muita coisa nesse mundo me emociona, obviamente. Mas acho que nada com mais freqüência do que o ROCK´N´ROLL.

E isso tem a ver como que o rock significa para mim. Não se trata de escalas, harmonias e arranjos: sou absolutamente inepto quando se trata de tocar algo mais complexo do que campainha. Também não se trata da poesia: ligo pouquíssimo pras letras. (Certa noite discutia isso com a Bia, que é muito ligada nos versos, e dei play numa canção que havia escutado por horas, naquela manhã. Disse que a canção me encantava, mas que não havia atentado para o tema da música. Aí veio a surpresa: era instrumental. Acho que era British Sea Power.) E se na adolescência o folclore em torno da louca vida dos artistas podia me atrair numa ou noutra direção, já perdi esse fetichismo há anos. A ponto de ter em casa uma das maiores coleções do Brasil de discos do David Bowie, mas não dar a mínima pra tal exposição que está atualmente em São Paulo. Até leio biografias, mas apenas quando elas investem mais texto no trabalho do sujeito do que na sua vida pessoal.

Uma pista é o rock underground. Não o rock excepcionalmente pesado, rápido ou experimental. Nunca curti heavy metal, hardcore ou aquelas pirações herméticas do Plano B. Meu limite é Motörhead e gosto de canções com estrofe / refrão / estrofe / refrão / solo / refrão / estrofe / coda. Acho muito salutar o limite de 3 minutos que a Motown impunha aos seus singles. Mas prefiro músicos que sobem no palco vestindo a mesma roupa que usam para ir ao supermercado, shows em lugares mais intimistas em bandas próximas, espacialmente falando – as bandas que estão tomando uma cerveja junto com o público, dos caras com quem esbarro pelos bares da vida.

Além do Wander, que me ligou há semanas e com quem passei o sábado – encerrado num jantar no Don´Ana -, rolou a mágica experiência com o Bruce Springsteen. Não foi tão pessoal, mas vi o show (em Sampa), bati um papo com o biográfo, Peter Carlin, na Saraiva do Rio Sul, esbarrei com o Steve Van Zandt na piscina do Copacabana Palace, estive numa roda em que também estava a backing vocal, Cindy, e soube da visita do Patrão à Lapa – e o motorista que o levou era primo do Cláudio, meu camarada da Headbanger, na Tijuca. E passei todas aquelas semanas devorando duas biografias do líder da E Street Band.

Wander Wildner e Bruce Springsteen são as duas figuras que melhor personificam o que o rock´n´roll significa para mim: compromisso com a arte a despeito dos interesses da indústria fonográfica; persistência na sua arte a despeito dos modismos passageiros; desprezo pelo glamour e pelo jet set; o palco e a comunicação direta com a platéia como momento privilegiado para exercerem seu ofício; empenho máximo em entregar ao público o seu melhor, sempre (não importa se é um estádio lotado ou um pocket show numa livraria); espírito aventureiro conjugado com uma incrível capacidade de improviso, fazendo com que jam sessions sejam tão impressionantes quanto as performances mais ensaiadas; canções que falam dos dramas e alegrias cotidianas de gente ordinária. E tudo isso com uma consistência e espontaneidade que te faz crer que fariam tudo da mesma forma, mesmo que fossem bancários e só tocassem no quintal dos amigos ou nos bares mais xexelentos do subúrbio mais distante.


É estranho falar em atemporalidade do rock´n´roll, já que se trata de algo tão recente e tão intrincado com o contexto do pós-guerra, em especial a reinvenção da idéia de juventude, o avanço dos meios de comunicação de massa e o advento da contracultura. Mas a insistência desses artistas em permanecer dentro dos limites de uma certa concepção artística quase conservadora, na medida em que segue prestando homenagem às suas raízes no country, soul e blues, permitem falar num Porto Seguro em meio à uma sociedade obcecada com a novidade. Tanto a indústria como a imprensa e a academia parecem agir como serial killers de idéias, ansiosas por declarar tudo obsoleto, tão logo vislumbre algo mais pitoresco virando a esquina. O novo tem um irresistível apelo publicitário, e o importante é que todos comprem mais! E raros são os artistas que optam por tornar-se melhores artesãos, explorando seus talentos conforme seus interesses genuínos, ao invés de “surfarem” a onda mais rentável do momento.

Outro aspecto do rock´n´roll que me fascina é a sua temática: o seu desdém pelo estilo de vida “careta” (confortável, estável e bem comportado), que é uma indubitável  expressão do escapismo juvenil (mesmo em se tratando do rock progressivo / heavy metal e suas narrativas de fantasia medieval, futurismo scy-fi ou ocultismo delirante). No que o escapismo juvenil tem de melhor: uma fé inabalável de que podemos viver de um jeito diferente e melhor do que aquele que nossos pais ensinaram. Uma auto-confiança  que se confunde com a arrogância, tamanha a certeza de que podemos ser donos de nosso destino.

Como se não bastasse, o rock´n´roll é um ambiente de camaradagem, tanto mais na medida em que é abandonado pela indústria– como no Brasil, onde as gravadoras decidiram que havia gêneros mais dignos de investimentos, e mais ainda no Rio de Janeiro, onde o samba continua reinando. O rock é feito de poucas e pequenas casas, freqüentadas por uma patota de meia dúzia. Os roqueiros praticamente inventaram os fanzines e as rádios-piratas. O fã de rock não é um cliente que seu ídolo deve bem atender: o fã de rock é um discípulo afoito para se engajar da divulgação e manutenção da obra de seus ídolos. (E ok: essa é a relação que qualquer apreciador de arte tem com os artistas, quando se trata de uma relação saudável!)

E agora que usei o termo “ídolo”, talvez seja hora de fazer o salto.

O rock´n´roll tem feito por mim o que a religião fez, em outros tempos.


A turma atéia e anti-clerical talvez se surpreenda, mas para mim o rock´n´roll tem sido libertador e fortalecedor, como o catolicismo um dia foi. Digo que deve surpreender porque muita gente tem idéias muito pré-concebidas – e diria até preconceituosas – com relação à religião.

Fui um católico muito militante durante a adolescência. Participei de grupos jovens, fiz vários retiros espirituais, fui catequista e participava ativamente da liturgia das missas.

E isso não significa que vivia “mergulhado” na comunidade religiosa. Meus primos, tios e avós não eram religiosos praticantes e eu frequentava uma paróquia distante do bairro onde morava: era uma exceção na escola onde estudava e na minha rua.

Ou seja: meu cotidiano era bem “ordinário”. As pessoas se preocupavam com campeonatos de futebol, a inflação, novos modelos de carro, churrascos no final de semana, e conversavam sobre carreiras profissionais, as novelas da Globo, viagens nas férias e doenças na família. Mesmo entre meus amigos nerds ou apenas esquisitos, o papo tinha mais referências à gibis, livros, filmes e discos, mas continuava um tanto superficial. Éramos adolescentes: o lance era zoar e botar pilha. E minha família não era afeita à conversas muito polêmicas: nada de filosofia, política ou arte.

A igreja me abriu os horizontes. Foi onde, pela primeira vez, eu tive a chance de discutir e pensar questões verdadeiramente importantes: o bem e o mal, a vida e a morte, a origem e o fim das coisas. A música e as artes plásticas como veículos para uma mensagem significativa, e não apenas acessórios para momentos de alegria ou tristeza. Um lugar onde as pessoas discutiam textos importantes, e tentavam extrair deles diretrizes para a vida e interpretações para uma melhor compreensão de suas próprias vidas e escolhas. Um lugar onde os caras mais velhos realmente me escutavam, com real disposição para dividir comigo o que pensavam. Não sei onde uma pessoa não religiosa poderia buscar lembranças de uma vivência como essa. Talvez no escotismo ou no movimento sionista. Talvez em colégios mais construtivistas ou algo parecido.

Mas a escola está demasiadamente comprometida com um certo espírito “cívico”, ou, como se diz hoje, de “cidadania”. E uma das coisas que considero mais valiosas da minha vivência religiosa foi o cultivo de um espírito crítico com relação à ordem jurídica vigente. Uma arma poderosa, que pode – ok, não vou negar – ser usada para o bem e para o mal. Fundamentalistas religiosos ignoram a lei e querem impor à todo mundo suas próprias concepções de certo e errado. Não há nada mais vil no mundo do que as malditas teocracias. Mas a desconfiança com relação Estado é o ponto de partida de qualquer revolução, inclusive as socialistas. E mais importante: sou grato pela compreensão de que o ordenamento jurídico de uma nação ou cidade, e o aparato estatal (seja a polícia ou a Receita Federal) não passam de uma tentativa de aplicar os ideais do que é bom e justo. Mas essas construções sociais jamais serão, em tempo algum, elas mesmas a fonte dos princípios éticos e morais de uma comunidade.



E falando em comunidade, a igreja é um ambiente que existe graças ao voluntariado. (É importante frisar: não estou falando aqui de instituições, como Vaticano. Quando escrevo igreja me refiro à Paróquia São José Operário, às pessoas que lá estavam, e às atividades que elas promoviam.) Um ambiente que rechaça a vaidade. Mesmo que o carismático Padre Fred fosse um popstar para nós, os holofotes estavam sempre sobre Deus e Cristo. É claro que haviam líderes mais paparicados que os outros, mas a “etiqueta” não “dava corda” pra que se venerasse essas figuras. A igreja era uma parte importantíssima da vida daquelas pessoas, e onde não valiam as regras do mercado. É claro que aquilo tinha um custo e que as pessoas participavam desse rateio, mas isso não era uma regra. E a ninguém estava ali em busca de remuneração. Os fiéis participavam daquelas atividades porque aquelas atividades precisavam ser feitas à despeito do “modo de produção” em que a “sociedade estava estruturada” – para usar termos marxistas. E de algum jeito, isso me ajudou a ver o capitalismo como algo não-natural e passageiro.

É claro que minha racionalização é frágil: no fim estou tentando traduzir o que sinto.Por mais que tente, o resultado será sempre decepcionante.


O caso é que meu ativismo religioso era, fora da igreja, motivo de chacota. Mas foi também meu primeiro rompimento com o jeito “careta” de ver o mundo. O catolicismo é conservador em termos de comportamento (homofóbico, monogâmico, romântico na sua acepção de amor, cordial, discreto, acanhado até), mas os ateus e agnósticos se enganam quando imaginam que a vida religiosa não seja intelectualmente estimulante: basta que a pessoa saia do círculo periférico, como o da missa semanal, e freqüente os fóruns apropriados. (Ninguém tem papos realmente maneiros sobre política indo apenas às passeatas: o cara precisa estar num partido, num grêmio estudantil, num sindicato ou num outro grupo de discussão qualquer.) (E a vida religiosa também pode ser festeira: grande parte das religiões cultiva ritos com alta intensidade emotiva e riqueza de expressões artísticas. Isso vale, por exemplo, para os hare-krishnas, de quem estive próximo em outra época.)

Basicamente o catolicismo me fez um crítico do estilo de vida consumista, imediatista e hedonista que me cercava. Me provou que pessoas com afinidades intelectuais podem coordenar esforços para a manutenção de um espaço e uma agenda dedicada aos seus interesses, onde não valem as tradicionais leis do mercado. E me mostrou que esse mutirão só é possível quando as pessoas sacrificam a vaidade em nome de um ideal claro e consistente.

Liberto do superego, eu precisei então me livrar do ego. (Um pouco que fosse!)

Veio então a turma do RPG, as noites de rock´n´roll no Mutley, os amigos cabeludos e tatuados, alguma contravenção pelas estradas intermunicipais do Vale do Paraíba e as tentativas de perder a virgindade.

Depois da descoberta da vida em comunidade veio a descoberta da individualidade.

Eu tinha um monte de idéias e gostava de um monte de coisas que não parecia interessar à turma da igreja. Eu gostava de ler, conversar e me informar, mas queria tirar minhas próprias conclusões sobre alguns lances, a partir da minha própria experiência. Quebrando a cara, dando murro em ponta de faca, me escaldando e calejando se preciso fosse. Em suma, eu queria uma certa dose de aventura e risco que não cabia no esquema católico.

(Não sei se o ocorrido revela algo relevante, mas eu abandonei o Sigma, grupo católico que freqüentava, num dia em que discutíamos um trecho da Bíblia. Eu falei sobre o significado da palavra “anjo”, a partir de umas etimologias do hebraico. A turma ficou meio alvoroçada: pelo visto ninguém lembrava das lições que Padre Fred havia dado uma semana antes! Então falei sobre a beleza literária do texto bíblico. E foi um escândalo. Que ousadia a minha: comparar a Bíblia, em qualquer aspecto, à literatura secular! Foi quando achei que não era mais o lugar pra mim.)   

O rock´n´roll representou para mim, naquele momento, esse salto no escuro, contra tudo e contra todos, em direção a um campo obscuro e incerto da vida, mas que me prometia a possibilidade de impor ao mundo minhas vontades – ou parte delas.

Não aprendi a tocar ou cantar, não montei banda. Mas as canções me consolavam e me inspiravam. E ainda me fornecem a força de espírito, como antes os sermões do Padre Fred faziam, para sair de casa todo dia de manhã e enfrentar o mundo lá fora.

E é por isso que hoje sou tão grato ao Padre Fred e ao Maharaja Chandramukha quanto sou ao Bruce Springsteen e ao Wander Wilder.


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Todos os dias desfila diante dos meus olhos uma infinidade de livros e discos. E até que alguém os tire da prateleira e leve até a caixa registradora da livraria, são todos meus. O resultado é que criei o hábito de levar para casa tudo quanto é item curioso, para dar um confere com calma, o que às vezes leva meses...

Foi assim que mirei no que vi a acertei no que não vi.

“Blue like jazz” é o segundo livro de Donald Miller, e achei que ele me ajudaria a desbravar o gênero musical nascido em New Orleans porque vi que tinha uma linguagem bem simples e objetiva, e o tema principal parecia servir de trampolim para digressões sobre os mais variados assuntos. A interdisciplinaridade que os franceses levaram décadas para teorizar – e que os brasileiros ainda penam para aplicar – sempre foi uma característica anglo-saxã, e o conceito de “cultural studies” dá prova disso. Alguns dos melhores e mais perspicazes livros que já li foram de críticos de arte elaborando crítica política (como “Cultura da Reclamação” de Robert Hughes), ou de jornalistas bancando os sociólogos ou cientistas políticos: “Crônicas de um país bem grande” de Bill Bryson, “Bubos no paraíso” de David Brooks e “Bruce Springsteen and the American Soul” de David Garrett Izzo. E pense em Hunter S. Thompson: bastava acrescentar notas de rodapé com referências bibliográficas e estatísticas e alguns de seus livros poderiam passar por teses de doutorado – de universidades beeeeem progressistas.



Mas “Blue like jazz” apenas passa rapidamente pelo jazz: seu tema é a fé cristã. Seu autor é um protestante militante que reflete sobre Deus a partir das próprias lembranças de estudante de Arte, namorado atrapalhado ou criança intrigada com as esquisitices dos adultos. Demorei a identificar o subtítulo na capa: “non-religious thoughts on christian spirituality”. Muito apropriado: não há citação de um versículo sequer da Bíblia. Nem à teólogos. Os milagres de que fala não tem efeitos especiais: pode ser um casamento que resiste à gênios conflitantes, o sujeito que mantém sua integridade quando no trabalho pinta uma chance de fazer grana alta de forma escusa, pai e filho que descobrem tardiamente como expressarem carinho mútuo ou o cara que sozinho em casa supera uma grande dor ao olhar para ela sob essa outra perspectiva. (O livro foi adaptado para o cinema por um diretor chamado Steve Taylor, mas em 2010 a falta de recursos iria tirá-lo de circulação. Foi feito um projeto de incentivo coletivo – no Kickstarter – e em 2 meses levantaram 340 mil dólares.)

Guardei o livro na casa dos meus pais, então não pude extrair dele um trecho que tenha achado especialmente tocante. (Faz tempo que li.) Mas achei uma página na web com uma centena de citações. E veja como algumas são belas, e aplicáveis a tantos outros contextos:

“O que acredito não é o que eu digo que acredito; o que acredito é o que faço.”

“Acho que as coisas que mais queremos na vida, as coisas que achamos que nos farão livres, não são as coisas das quais precisamos.”

“A mentira mais difícil que eu tive de encarar é essa: a vida não é uma história sobre mim.”

“Morrer por algo é fácil porque está associado à glória. Viver por alguma coisa é o lance difícil. Viver por algo vai além de moda, prestígio ou reconhecimento.”

“Quando você vive por conta própria por muito tempo a sua personalidade muda, porque você tem tanto dentro de si que você perde sua sociabilidade, sua compreensão do comportamento mediano. Há um mundo inteiro dentro de você, e se você se permitir, pode mergulhar tão fundo que esquecerá o caminho de volta. Outras pessoas mantém sua alma acesa, exatamente como água e comida fazem com seu corpo.”

Muito disso tem a ver com a idéia que faço do rock´n´roll e do meu papel na cena roqueira.

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Finalmente: outro livro que julguei ser algo que não era foi “Air Guitar”, de Dave Hickey– jornalista e crítico ligado às artes que já foi ou é colaborador da Rolling Stone, Art News, Art in America, Artforum e Vanity Fair, entre várias outras. Mas apesar do título e da guitarra flamejante da capa, não é um livro sobre rock´n´roll. Seu subtítulo é: “essays on Art and Democracy”.

É outra obra que merecia ganhar uma tradução brasileira.

“The 23 essays (or "love songs") that make up the now classic volume Air Guitar trawl a "vast, invisible underground empire" of pleasure, through record stores, honky-tonks, art galleries, jazz clubs, cocktail lounges, surf shops and hot-rod stores, as restlessly on the move as the America they depict. Air Guitar pioneered a kind of plain-talking in cultural criticism, willingly subjective and always candid and direct. A valuable reading tool for art lovers, neophytes, students and teachers alike, Hickey's book—now in its eighth printing—has galvanized a generation of art lovers, with new takes on Norman Rockwell, Robert Mapplethorpe, Stan Brakhage, Andy Warhol and Perry Mason. In June 2009, Newsweekvoted Air Guitar one of the top 50 books that "open a window on the times we live in, whether they deal directly with the issues of today or simply help us see ourselves in new and surprising ways," and described the book as "a seamless blend of criticism, personal history, and a deep appreciation for the sheer nuttiness of American life."

Resenha de Robert Christgau:




Uns números para quem se interessa por política & economia

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Gostaria de me manter mais informado a respeito de política e economia. Mas com a primeira tenho dificuldades graças ao meu estômago fraco, e para me inteirar da segunda teria que ter mais desenvoltura com números. 

Além disso decidi boicoitar o jornal O Globo, depois de acompanhar a péssima (e até canalha) cobertura que estão fazendo dos protestos que tomam o país há 7 meses. Mas meu querido vizinho Kiko continua assinando o jornal, e gentilmente compartilhado com a rapaziada aqui da Vila. Então andei anotando alguns dados que julgo importantes de serem compartilhados.



Compilados de vários jornais (não só o Globo), em meados de fevereiro de 2014:

FATOS DISPERSOS a serem processos por MENTES ATENTAS:
  
1) A Presidência da República vai gastar, até dezembro de 2014, R$ 141.595 em flores e plantas. Um pregão marcado para março prevê a compra, entre outros, de 440 arranjos de flores nobres, 20 buquês, 1.550 flores (550 orquídeas), 50 coroas fúnebres e três árvores de natal.

2) O Brasil passa por uma crise energética, que diante da atual falta de chuvas resultou nos recentes apagões, de proporções nacionais. No entanto faz um ano que 1.200 megawatts de energia geradas por parques eólicos estão sendo desperdiçadas. A energia gerada pelo vento equivale a uma hidrelétrica de Serra da Mesa, ou três hidrelétricas de Três Marias. A Chesf, que ganhou o leilão para construir as linhas de transmissão, não o fez. Essa energia reduziria a necessidade de térmicas sujas, caras e altamente subsidiadas. Além disso, calcula-se que meia Itaipu é jogada fora por falta de um programa nacional de poupança de energia.


3) Condenado a 22 anos de prisão pelos crimes de favorecimento à prostituição, posse de fotos pornográficas envolvendo crianças e peculato (desviar bem público em proveito próprio), o coronel Adilson Oliveira Perinei foi aposentado com direito a vencimento integral de R$ 16.276,61, há algumas semanas. O coronel dos Bombeiros foi preso em flagrante com uma menina de 13 anos, num motel da rodovia Presidente Dutra, em janeiro de 2010. Detalhe: Adilson foi corregedor do Corpo de Bombeiros.

4) A produção industrial brasileira recuou 3,5% em dezembro de 2013, frente à novembro: o pior resultado desde dezembro de 2008, em plena crise financeira internacional, segundo dados do IBGE divulgados em 4 de fevereiro. Com o dado os especialistas desistiram da já pessimista estimativa de 1,5% de alta na produção industrial para 2014.

5) A balança comercial brasileira teve, em janeiro deste ano, o seu pior desempenho desde 1994. O déficit foi de R$ 4,057 bilhões. A média diária importada foi recorde, atingindo R$ 912,9 milhões, e foi puxada pela importação de bens de consumo, como eletrodomésticos, móveis, roupas, alimentos, automóveis e bebidas. Houve decréscimo acentuado nas exportações de açúcar refinado (48,7%), etanol (42,6%), automóveis (27,4%) e autopeças (27%), entre outros.


6) A Fifa cobra de emissoras de televisão o direito de transmitir partidas da Copa do Mundo. Só no Mundial no Brasil, a venda desses direitos vai render US$ 2,2 bilhões à entidade (mais de R$ 5 bilhões no câmbio de hoje). A Copa de 2014 toda gerará ganhos de US$ 4 bilhões (mais de R$ 9 bilhões).

7) Em fevereiro de 2012 o governo federal emitiu as primeiras autorizações para a construção de 358 CEUs (Centros de Artes e Esportes Unificados): espaços públicos destinados à integração de “programas e ações culturais, práticas esportivas e de lazer, formação e qualificação profissionais e serviços sócio-assistenciais”. São 3 modalidades diferentes de CEUs: um tem 700 m2, outro 3 mil metros quadrados e o terceiro 7 mil. O prazo para o término de todas as obras é 31 de dezembro de 2014. Até o dia 26 de janeiro haviam sido concluídos apenas 13 (que custaram R$ 25,5 milhões). 278 obras estão em andamento (e já consumiram R$ 258,5 milhões) e 67 obras sequer foram iniciadas. Restam 1,78 milhão do orçamento inicialmente previsto.


8) No ano em que os preços dos imóveis atingiram preços estratosféricos e o crédito para a compra da casa própria atingiu o recorde histórico de R$ 109 bilhões, com 530 mil unidades financiadas, as 17 construtoras e incorporadoras que tem ações negociadas na Bovespa perderam R$ 10,2 bilhões em valor de mercado– começaram 2013 valendo R$ 41,2 bi e terminaram o ano na marca de R$ 31,1 bilhões. Entre 2010 e 2012 os índices apontavam, no Rio de Janeiro, uma inflação de 194% dos imóveis. Dados de 2013 chegam a um aumento adicional de 60,88%(no caso do bairro de Botafogo, por exemplo). Mas isso não é calculado com base nos negócios efetivamente fechados, e sim com base na oferta. No mesmo período o índice de ociosidade dos imóveis comerciais pulou de 12% para 20%. E mesmo nas áreas nobres da cidade o que temos visto este ano é uma incrível desistência, até de empresários de setores luxuosos do comércio, de continuarem pagando esses preços exorbitantes. Matéria do Globo a respeito:


9) Em 2012 a Google comprou a Motorola por US$ 12,5 bilhões. Em janeiro de 2014 a Google vendeu a mesma Motorola à Lenovo por US$ 2,91 bilhões. Efetivando um prejuízo de 10 bilhões de dólares, menos de 30 meses (duração tradicional de um contrato de aluguel residencial) da operação inicial. Das duas, uma: ou a Google nunca teve um plano do que fazer com o ativo que adquiriu, ou foram muito mal informados a respeito do que estavam comprando. De todo modo é muito estranho que os cérebros considerados dos mais brilhantes do mundo atual dos negócios lidem tão mal, com tanto dinheiro. Ou então não é nada disso, mas apenas um dia a mais no Cassino global...


10) Você sabia que o Carnaval de rua do Rio (aquele mesmo, que sempre existiu, organizado de forma espontânea e informal pelos moradores da cidade, e que resistiu à décadas de descaso do poder público) hoje em dia é organizado por uma empresa privada, escolhida por edital? Adivinha qual é? A Dream Factory, do Roberto Medina. Pelo quinto ano consecutivo.

11) O prefeito Eduardo Paes sobre a possibilidade de rodízio de carros no centro do Rio de Janeiro: “Não vou fazer. Com essa porcaria de transporte público que tem no Rio, eu só posso pedir, apelar à população, e não punir. Não posso dizer: enfrenta um quentão e vem.” MAS ACONTECE QUE muita, mas muita gente mesmo, não tem essa opção. (Seja porque não tem condições de comprar um carro, seja porque voluntariamente optaram por não dirigir – como é o meu caso.) E como essa rapaziada fica? Num perrengue sem vistas de solução, para salvaguardar o “sacro” direito dos outros de engarrafar o trânsito, no conforto dos seus carangos.  


12) A imprensa alardeou em tom apocalíptico que existiam “tenebrosas evidências de que o PSOL, o PSTU e outros grupos de esquerda estavam financiando os perigosos radicais que estão nas ruas, protestando”. E apresentaram como prova os alimentos, roupas e outros mantimentos que esses partidos doaram aos manifestantes que ocuparam a Câmara dos Vereadores e a ALERJ. Já no site oficial do PT já uma seção orientando os afiliados a doarem parte de seus rendimentos ao partido: 2% (para quem ganha entre R$ 200 e R$ 900), 5% (de R$ 900 a R$ 1,8 mil), 8% (até R$ 2,7 mil), 11% (até R$ 3,6 mil) ou 14% (acima de R$ 3,6 mil). Petistas exercendo mandato devem doar até 20% da sua renda– e já soube de pessoas que foram intimadas a fazer essa doação mesmo sendo funcionário de carreira da instituição, mas exercendo cargo de confiança. O Partidos dos Trabalhadores também criou campanha para que as pessoas ajudassem os condenados no processo do Mensalão a pagarem as multas aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal. Em nove dias Delúbio Soares recebeu R$ 1 milhão (e mais 13 reais, pra ser exato) em doações– isso dá R$ 112,6 mil por dia. No período de um ano o Greenpeace arrecadou R$ 8,8 milhões (24 mil por dia) e a Pastoral da Criança conseguiu R$ 877.579,00 – dados respectivamente de 2012 e 2013.


Matéria da OUL:

“Policiais militares que acompanharam a manifestação contra a Copa do Mundo na tarde deste sábado, 22, no centro de São Paulo, usaram a percepção de que um ato de vandalismo estava prestes a acontecer para explicar porque isolaram parte dos manifestantes e detiveram 230 pessoas, acabando com o protesto uma hora após seu início.
Advogados dizem que o procedimento é inconstitucional e citam outras infrações cometidas pela polícia para afirmar que o governo do Estado está fazendo um uso político da situação. Após a confusão na Rua Xavier de Toledo, por exemplo, os advogados foram expulsos do cordão de isolamento onde estavam os detidos e não puderam acompanhar a revista.
"Na hora em que filmávamos um garoto sendo agredido por um policial, fomos colocados para fora do cordão de isolamento. Fomos expulsos a pontapés", afirma o advogado André Zanardo, do Grupo Advogados Ativistas, que representa gratuitamente os manifestantes. "Temos o direito de acompanhar a revista. É uma prerrogativa legal."
(...) Dois policiais ouvidos pelo UOL Esporte disseram que receberam a ordem de deter o maior número de pessoas porque havia uma série de mandados de prisão contra black blocs a serem cumpridos. Levando mais gente para a delegacia, seria maior a chance de encontrar alguma dessas pessoas e acusá-las por crimes cometidos em outras manifestações, segundo esses policiais. O major Saraiva, porém, negou a existência dessa ordem.

Também integrante do Advogados Ativistas, Igor Leone disse que, já na delegacia, os policiais apresentaram quatro tipos de queixas: desacato a autoridade, resistência à prisão, desobediência e lesão corporal (porque uma policial quebrou o braço ao tentar conter os manifestantes). Nenhuma acusação de dano ao patrimônio ou vandalismo foi feita no 78º DP (Jardins), para onde foi parte dos manifestantes.
"Juridicamente, isso não tem fundamento. A nossa constituição prevê que as condutas devem ser individualizadas. E não tem como individualizar esses crimes. A polícia diz que apreendeu pedras e pedaços de madeira, mas de quem são? O que as pessoas fizeram com esses objetos?”

(...) Um procedimento semelhante aconteceu no sábado. Cerca de 40 pessoas que estiveram no protesto de 25 de janeiro, o primeiro ocorrido em São Paulo contra a Copa, foram chamadas para depor bem no horário da manifestação deste sábado. Nem todos os convocados à delegacia, porém, eram adeptos de táticas black blocs ou mesmo de uso da violência. A mãe de um manifestante, que nunca havia ido pra rua, por exemplo, estava no grupo.


"O Estado claramente está fazendo um uso político dessa situação. Monta um circo midiático para colocar a opinião pública contra as manifestações. As pessoas estão sendo fichadas para que não tenham o direito de se manifestar no futuro. E isso acontece de forma aleatória, como se fosse um crime estar na rua. Isso é uma didatura. Estamos vivendo em um estado de exceção", afirmou o advogado Zanardo.

Zanardo cobra um posicionamento da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) sobre o que considera um desrespeito à Constituição. Além de não se pronunciar, a OAB enviou para o 78º DP, na noite de sábado, uma comissão para avaliar se a atuação dos Advogados Ativistas estava dentro das regras da categoria. "Não somos nós que precisamos ser avaliados", disse Zanardo.”

Guia do Rock Underground Brasileiro, Parte 8: Veteranos que correm por fora & revistas especializadas

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VETERANOS QUE “CORREM POR FORA”:

Entre as bandas que já foram do primeiro escalão do rock nacional, com grande exposição na mídia, e que seguiram lançando ótimos discos, mesmo quando já não conseguiam tanto espaço, estão o Nenhum de Nós, o Ira! (defendo com todas as armas o “Invisível DJ”, de 2009) e o Hanói Hanói, por exemplo (seu líder e principal compositor, Arnaldo Brandão, na área desde os tempos de O Peso, nos anos 70, continua lançando bons discos, agora em carreira solo).



E existe um caso ou outro de artistas que se tornaram “bandas de baile”, lotando estádios (e feiras agrárias, ou até rodeios) pelo interior do Brasil– normalmente depois de lançar um disco de estúdio apenas com versões para clássicos dos anos 80. O caso mais notório é o Biquini Cavadão, que chegou a bater o antigo campeão de shows desse tipo (o Amado Batista), e com isso pôde financiar seu último e ótimo disco de inéditas, “Roda Gigante”, de 2013 – uma produção independente com distribuição da Warner.


Rodrigo Santos é outro cara que tem conseguido manter uma prolífica produção autoral, de ótima qualidade, graças aos shows que faz cantando clássicos do Barão Vermelho (banda em que é baixista) e de outros figurões do rock brazuca, salpicados com uns hits gringos (muitas vezes dentro do contexto de sua própria trajetória: ele tocou com Andy Summers, por exemplo), conseguindo assim segurar platéias difíceis, avessas à novidades, como a massa disforme que freqüenta o Rock in Rio nos dias de hoje. Existe uma turma, aliás, ligada ao Barão Vermelho, que andou lançando ótimos discos, curiosamente todos mais interessantes do que praticamente tudo que a banda “oficial” deles fez nos últimos 20 anos. O que me motivou a escreveu o artigo “Pistas de que o Barão Vermelho ainda poderia fazer um grande disco”:


E vale dizer que quando escrevi esse artigo ainda tinha ressalvas sobre a obra solo do Rodrigo Santos. Depois de escutar atentamente seus 2 álbuns mais recentes, “O diário de homem invisível” (2009) e “Motel Maravilha” (2013), e de vê-lo em ação no palco, fui completamente convencido: o cara é um compositor de mão cheia e um performer excelente. E prevendo que o leitor não aceite o convite para ler o outro artigo, deixo aqui a recomendação daquele que julgo o mais talentoso desses caras, o Humberto Barros, multi-instrumentista e compositor que lançou dois fantásticos discos solo: “O mundo está fervendo” (2006) e “Brincando no quarto colorido” (o melhor deles). Como tecladista, Humberto já tocou com deus-&-o-mundo: Kid Abelha, Heróis da Resistência, Lobão, Paulinho Moska, Autoramas, Zeca Baleiro, Leoni, Ritchie, Zélia Duncan, Cidade Negra, Fernanda Abreu, Rita Lee e Negra Li, entre outros. Na época desconhecia o disco “Do nada ao tudo”, o mais recente trabalho do Humberto. Pode ser escutado aqui:



(O que assusta é que até Roberto Frejat, líder do Barão Vermelho que partiu, em carreira solo, para um pop-romântico-levemente-roqueiro comercialmente bem sucedido, precise hoje montar um “show-baile”, para manter seu fluxo de caixa. Conforme ele explica num artigo publicado no jornal O Globo - “Pense e Dance”, 31 de janeiro de 2014, pág. 3 do Segundo Caderno -, o show “O amor é quente” utiliza uma fração das canções autorais que normalmente constituem seu repertório, e é complementado por “releituras” de Tim Maia, Jorge Ben e Caetano Veloso. Segundo Frejat, “as platéias hoje andam muito dispersas”. )

Mas alguns trabalhos de “resgate” artístico podem funcionar como celeiros de experimentação que contribuem para a renovação da cena, quase como um disco de inéditas. É o caso também da Fabulosa Orquestra de Rock´n´Roll do Roger (do Ultrage à Rigor) e do Lafayette & Os Tremendões - organizada por Gabriel Thomaz, do Autoramas, depois que ele viu seu ídolo tocando numa praça de alimentação de Shopping; e que conta com Érika Martins (ex-Penélope), Nervoso (ex-Beach Lizards e ex-Acabou La Tequila), Renato Martins, (ex-Acabou La Tequila, atual Canastra) e Melvin Fleming (ex-Carbona e ex-Hill Valleys).


Outro disco recente de “versões” (às vezes muito diferente das originais) é o “Hits do Underground”, da dupla André Frateschi & Miranda Kassim. O repertório foi muitíssimo bem escolhido e traz alguns dos melhores compositores da “cena under”: Vanguart, Curumin, O Degrau, Mombojó, Cérebro Eletrônico, Numismata, Wado, Rubinho Jacobina, Ludov, Os Mulheres Negras e Wander Wildner. O casal Frateschi & Kassim tem outros dois trabalhos de versões: “Heroes” (tributo ao David Bowie) e “Divas do Soul” (dedicado à Amy Winehouse e outras divas).


A Deck Discos iniciou há uns meses uma série de lançamentos muito bacanas: splits em que 2 bandas "se enfrentam": uma reinterpretando o repertório da outra. A série foi inaugurada pela peleja entre Ultraje a Rigor e Raimundos, e o duelo entre Mundo Livre S/A e Nação Zumbi saiu inclusive em LP.


Finalmente há dois discos que merecem ser incluídos na sua listinha de “aquisições futuras”: “SP55” do Sérgio Britto (dos Titãs), de 2010, e, principalmente, o único disco solo de Alvin L (do Sex Beatles), lançado em meados dos anos 90. Tenho a impressão de que Alvin foi um dos únicos roqueiros brasileiros que incursionou pela sonoridade de madchester– aquele som dançante criado pelo Happy Mondays, Charlatans, New Fast Automatic Daffodils e Stone Roses.


“Last, but not least”: Edgard Scandurra, guitarrista e compositor do Ira! lançou dois discos incríveis (antes de cair de cabeça na música eletrônica), que devem constar em qualquer boa coleção dedicado ao rock brasileiro: “Amigos Invisíveis” (1989) e “Benzina” (1996). Isso dentro de uma sonoridade mais radiofônica, porque nos anos 80 o cara teve uma uma dúzia de projetos paralelos aos Ira!, sempre dentro do universo do pós-punk, sempre com ótimos resultados!



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REVISTAS ESPECIALIZADAS & COLETÂNEAS QUE MARCARAM ÉPOCA:

André Forastieri é um dos jornalistas que prestou grandes serviços à causa. Em 1994 ele saiu da Bizz (a revista brasileira mais importante do gênero, fundada em 1985) e criou a revista General, que apresentou aos brasileiros bandas como Beastie Boys, Blur, The Breeders e Radiohead– numa fita K7 que veio de brinde na sua sexta edição. Outra publicação fundada por quem fez escola na Bizz foi a [ ]Zero, que teve apenas 14 edições, a partir de 2002 (Luiz César Pimentel disponibiliza tudo para download emhttp://luizcesar.com/revistas/ ).


A revista TRIP (hoje tão.... irrelevante) lançou em fins dos anos 90 / início dos anos 2000 umas coletâneas de peso em termos de cenas alternativas. Além de uma dedicada ao CEP 20.000 (alternando canções e performances poéticas), rolou uma com 18 bandas gaúchas (“1 kg de Sul Music”), uma de sons funkeados (além de uns lances mais miami-bass-de-favela, trazia Funk Como Le Gusta, Gerson King Combo, Black Alien & Speed Freaks, Sindicato do Groove e João Parahyba & Suba, numa linha mais James Brown / Kool & The Gang / Funkadelic), outra de reggae nacional (Tribo de Jah, Skuba, Professor Antena, Ras Bernardo etc) e um panorama da cena de Recife (“Rec Beat ao Vivo”), entre outros. Guardei até um que reúne bandas que não fazem um tipo de som do meu agrado, apenas para ter uma “porta de entrada” se um dia eu resolver virar headbanger: “Porrada!!!: Ratos de Porão + 12 sons pra quem gosta de peso, selecionadas por Andreas Kisser do Sepultura” – só tem bandas brasileiras: Tolerância Zero, Mary Walks Alone, Infierno, Nitrominds, Lucrezia Borgia, Korzus, Varukers etc.



Entre 2003 e 2008 o cantor (e eterno infant terrible da cena) Lobão criou a revista OutraCoisa, que sempre trazia um CD encartado: estréias de peso (Vanguart, B Negão & Seletores de Frequência, Mombojó, Canastra, Cachorro Grande, Faichecleres, Cascadura), rappers que curtiam um crossover (Instituto, 5º Andar), discos de alguns dos “lobos solitários” da velha guarda (o próprio Lobão, Wander Wildner, Plebe Rude, Arnaldo Baptista e, àquela altura, podemos incluir o Rogério Skylab) e outros – como Bidê ou Balde, Réu & Condenado, Astronautas e Carbona. Na verdade Lobão havia é descoberto um truque para lançar discos usando as isenções fiscais destinadas à livros e revistas! Algo que se iniciou com o lançamento do melhor disco de sua fase “madura”, o excelente “A Vida É Doce”, de 1999 – à altura de seus clássicos dos anos 80, e cuja turnê promocional rendeu o igualmente inspirado “Ao vivo no Universo Paralelo”, de 2001.


O jornalista Ricardo Alexandre, autor do livro “Dias de Luta”(sobre o rock dos anos 80) foi um dos fundadores da revista FRENTE, lançada em 2002 e que jogou a toalha depois de apenas 3 números. Não sem antes lançar uma ótima coletânea em CD entitulada “Canções  que gostaríamos de ouvir no rádio”, com Astromato, Cachorro Grande, PB, Los Hermanos, Professor Antena, Magazine, Wander Wildner, Casino, Wado, Sonic Júnior, Instituto & Sabotage, Stereo Maracanã, Thee Butchers´ Orchestra, MQN e Mini. Isso foi em 2002, o que mostra que, naquele momento, algo levou muita gente a crer que havia uma cena consistente, que oferecia oportunidades comerciais concretas.


A grande questão é: foi uma miragem? O que será que esse pessoal enxergou? Ou, se havia boas razões para o otimismo, o que deu errado?  Esse é o tom da instigante entrevista feita pelo site Observatório da Imprensa:



Finalmente, vale lembrar o CD promocional que foi lançado em conjunto pela Revista MOSH!, a festa LOUD! e o selo Rastropop, em 2006. O encarte funciona como uma edição especial da revista em quadrinhos dedicada ao rock´n´roll, com projeto gráfico do artista gráfico Sandro Menezes. A relevância para a cena da revista criada por Renato Lima e S. Lobo já foi comentado aqui, no capítulo 6: http://aptovazio.blogspot.com.br/2014/02/guia-do-rock-underground-brasileiro_4373.html

"I Want it Loud" traz 10 bandas: Monkavision (RS), Eddie (Recife), The Feitos, Nelson & Os Gonçalves, Canastra, Netunos, Maurício Negão, Lasciva Lula, Staples, Pic Nic e Taw - todas essas outras aqui do Rio de Janeiro. No link abaixo: uma resenha publicada no Rock Em Geral, do Marcos Bragatto:




Guia do Rock Underground Brasileiro, Parte 9: 120 pérolas perdidas do rock brazuca (mais ou menos underground)

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Essa é pra você aplicar naquele teu amigo rabugento, que insiste em dizer que "não se faz mais bom rock como antigamente", ou que "não há mais boas bandas de rock no Brasil". Porque pode até ser que as rádios e programas de TV não estejam mais interessados no rock´n´roll. Mas é questão de saber onde e como garimpar!

Eu mesmo me surpreendo com o quanto ainda desconheço. A maioria da lista de melhores discos de 2013 feito pelo portal Rock Press eu ainda preciso investigar:


Existe uma infinidade de grandes discos que infelizmente não recebem a merecida atenção da imprensa. E portanto canções que deveriam ser ter se tornado hinos de uma geração acabam se perdendo pelo caminho (graças também à – muita equivocada, na minha opinião – resistência das bandas em incluir no repertório canções que não sejam de sua autoria. Eu acredito que um dos segredos para a vitalidade e resistência do samba está na maneira como seu repertório é divulgado nas rodas. Muita gente sabe de cor as músicas, mesmo nunca tendo escutado alguma gravação daquele tema).

Comecei a fazer essa lista faz algumas semanas, e há poucos dias, coincidentemente, meu amigo Marcus Losanoff fez outra, apenas sobre os anos 90 – motivado pela leitura do livro “Cheguei bem a tempo de ser o palco desabar”, do jornalista Ricardo Alexandre. As listas se complementam, e ele me autorizou a publicar a dele aqui.

Então vamos lá. A minha lista é apenas de discos lançados a partir de 2000(obedecendo a dois critérios arbitrários: apenas 1 disco de cada artista e meu idiossincrático gosto pessoal.). E veja como "o rock brazuca vai muito bem, obrigado": acho que metade desses 68 discos foram lançados nos últimos 5 anos!

1. Andreia Dias: “Vol. 1”, Scubidu / Vértices Discos, 2007 – São Paulo.

2. Apanhador Só: “Apanhador Só”, independente, 2010 – Porto Alegre.


3. Arthur Joly: “Apresenta Jam Jolie Orquestra”, Reco-Head Records, 2006 – São Paulo.

4. Astromato: “Melodias de uma estrela falsa”, midsummer madness, 2000 – Campinas (SP).

5. Autoramas: “Música Crocante”, Coqueiro Verde, 2012 – Rio de Janeiro.

6. Alice : “Ruído”, independente, meados dos anos 2000 – Rio de Janeiro (banda que revelou o cantor e compositor Cícero Rosa Lins).

7. Banzé, “De pernas pro ar”, Mondo 77, 2005 – São Paulo.

8. Bidê ou Balde: “Se sexo é o que importa, só o rock é sobre amor!”, Antídoto / Abril Music, 2000 – Porto Alegre.

9. Big Trep (A Grande Trepada): “Meia-noite insana”, independente, 2003 – Rio de Janeiro.

10. Cambriana: “House of tolerance”, Fósforo Discos, 2012 – Goiânia.


11. Canastra: “Chega de falsas promessas”, Revista Outra Coisa, 2007 - Rio de Janeiro.

12. Cartolas: “Original de Fábrica”, independente, 2006 – Porto Alegre.

13. Cassim & Barbária: “Cassim & Barbária”, midsummer madness / BNS Sessions, 2009 – Florianópolis (SC).

14. China: “Moto Contínuo”, 2011 – Recife / São Paulo.

15. Cidadão Instigado: “Uhuuu!”, Totem Estúdio, 2008 - Fortaleza (CE).


16. Companhia Itinerante: “Sendo Eu”, Som Livre Apresenta, 2007 – Rio de Janeiro.

17. Churrus: “Transcontinental”, Sinoweb / UFSJ / midsummer madness, 2013 – São João Del Rey (MG).

18. Coletivo Rádio Cipó: “Formigando na calçada do Brasil”, Ná Records, 2008 – Belém do Pará.

19. Destruidores de Tóquio:”O avesso e o avesso”, 2008, Ná Music, - Belém do Pará,

20. Dudu Tsuda: “Le son par lui même”, independente, 2012.

21. Faichecleres: “Indecente, imoral & sem vergonha”, Antídoto, 2005 – Curitiba (PR).

22. Filhos da Judith: “Filhos da Judith”, Coqueiro Verde, 2011 – Rio de Janeiro.

23. Flávio Abbes: “Pensamento Inconstante Flutuante”, independente, começo dos anos 2000 – Rio de Janeiro.

24. Flu: “Rocks”, YB Music, 2012 – Porto Alegre.

25. Garotas Suecas: “Escaldante Banda”, American Dust (LP), 2010 – São Paulo.

26. Gilber T: “Eu não vou morrer hoje”, Tomba Records, fins dos anos 2000 – Niterói (RJ).

27. Gork: “Tomoroll Tecnik”, Pisces Records, 2012 – São Paulo. Power trio que tem o André Abujamra, do Mulheres Negras, na guitarra.


 28. Humberto Barros: “Trancado no Quarto Colorido”, independente – Rio de Janeiro.

29. Hurtmold: “Cozido”, Submarine Records, 2002 – São Paulo.

30. Identidade: “Jogo Sujo”, Good Music Records, 2006 – Porto Alegre.

31. Juvenil Silva: “Desapego”, Carozo Records, 2013 – Recife.

32. Koti & Os Penitentes: “Caído na sarjeta”, Pisces Records, 2008 - Curitiba.

33. Lasciva Lula, “Sublime Mundo Crânio”, independente, 2008 – Rio de Janeiro.

34. Les Pops: “Quero ser cool”, Discobertas, 2011 – Rio de Janeiro.

35. Letuce: “Plano de fuga para cima dos outros e de mim”, Bolacha, 2011 – Rio de Janeiro.


36. Los Canos: “Cada dia mais limpo e romântico”, Laja Records, 2006 – Salvador.

37. Lulina: “Cristalina”, YB Music, 2009 – Olinda (PE).

38. Luneta Mágica: “Amanhã vai ser o melhor dia da sua vida”, independente, 2012 – Manaus (AM).

39. Marcelo Jeneci: “Feito pra acabar”, Slap Music, 2010 – São Paulo.

40. Marcelo Mendes & Os Bacanas, “No embalo do Helicóptero”, Pisces Records, 2010 – Florianópolis (SC).

41. Mauro Motoki: “Bom Retiro”, independente (e lançado em LP!), 2012 – São Paulo.

42. Momo: “Buscador”, Umbilical, 2008 – Rio de Janeiro.

43. Mr. Spacecake: sem título, midsummer madness / Pisces Records, 200? – Fortaleza, CE. Disco solo do guitarrista Regis Damasceno, que toca com Cidadão Instigado, Guizado e outros.

44. Mundo Livre S/A: “Novas lendas da etnia Toshi Babaa”, Zero Ponto-Um / Zeroneutro / Coqueiro Verde, 2011 – Recife (PE).

45. Nelson & Os Gonçalves: "A batalha dos Arcos", independente, 2008 - Rio de Janeiro.

46. Netunos: “Alto mar”, Rastropop, 2006 – Rio de Janeiro.

47. Nevilton: “Sacode!”, Oi Música / Bolacha Discos, 2013 – Umuarama (PR).

48. Ortinho: “Herói Trancado”, independente, 2010 -  Recife (PE).


49. Os Telepatas: “Bandeirantes”, Trombador Discos, 2008 - São Paulo.

50. O Terno: “66”, Tratore, 2012 – São Paulo.

51. Pelvs: “Península”, midsummer madness, 2001 – Rio de Janeiro.

52. Renato Godá: “Canções para embalar marujos”, independente, 2010 – Curitiba (PR).

53. Rodrigo Santos: “O diário do homem invisível”, Som Livre, 2009 – Rio de Janeiro.

54. Sabonetes: “Sabonetes”, Nikolay Produções, 2009 – São Paulo.

55. Sapatos Bicolores: “Clube quente dos Sapatos Bicolores”, Monstro Discos / Radiola, meados dos anos 2000 – Goiânia.

56. Selvagens à Procura de Lei: “Selvagens à Procura de Lei”, Universal, 2013 – Fortaleza (CE).

57. Superguidis: “Superguidis”, Senhor F, 2006 – Porto Alegre.


58. Thee Butcher´s Orchestra: “Golden Hits by...”, Ordinary Records / Sebo 264, 2000 - São Paulo.

59. Ultraman: “Olelê”, Rock it! / RDS Fonográfica, 2000 – Porto Alegre.

60. Vários: trilha sonora do filme “Era uma vez dois verões”, Casa de Cinema de Porto Alegre, 2002. Participam as bandas Papas na Língua, Pato Fu, Ultramen, Sombrero Luminoso, Jay Walkers, Video Hits, NIkita e Tequila Baby, além de Frank Jorge, Nei Lisboa, Cássia Eller e Wander Wildner. Ou seja: uma excelente amostragem do que rolava de mais bacana pelos pampas naquela época.

61. Vanguart: “Vanguart”, independete, 2007 – Cuiabá (MT).


62. Vários: “Marlindo”, Transfusão Noise Records, 2012 – basicamente Rio de Janeiro (mas com participações de bandas de outras cidades). Trilha sonora para uma Novela Gráfica criada por Fábio Lyra (que assina muitas capas para discos da Transfusão) em parceria com o fundador do selo, Lê Almeida. A HQ (até hoje não lançada!) gira em torno de um cara na casa dos 20 e poucos anos e dos seus amigos, por vezes tão perdidos quanto ele (pensar no futuro? Arrumar um emprego? Fazer faculdade? Ou só curtir o que tá rolando?). Participam as bandas Suíte Parque, Top Surprise, Fujimo, Tape Rec, Hierofante Púrpura, Loomer, Trash No Star, Aroflogilo Pai, Medialunas, Babe Florida, Cretina, Looking For Jenny, Badhoneys, The John Candy, Carpete Florido, Treli Feli Repi e o cantor Wallace Costa.

63. Vera Loca: “Meu toca discos se matou”, independente, 2002 – Santa Maria (RS).

64. Vespas Mandarinas: “Animal Nacional”, Deck Discos, 2013 – São Paulo.

65. Violins: “Tribunal Surdo”, Monstro Discos, 2007 – Goiânia.



66. Wagner José & Seu Bando: “Uma dúzia é dez”, independente, 2008 – Rio de Janeiro

67. White: “Rocking Land”, independente, 2009 –projeto do duo de compositores Alexandre, guitarrista carioca, e Pedro Freitas Branco, cantor lisboeta radicado no Rio.

68. Zefirina Bomba: “Nós só precisamos de 20 minutos pra rachar sua cabeça!”, Tamborete / SubFolk, 2009 – João Pessoa (PB).


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“Ninguém me pediu, mas inspirado por esta romântica vibe noventeira, faço uma lista de 50 discos do indie/rock/pop brasileiro da década de 90 que ajudaram a forjar o meu caráter músico-comportamental durante a espinhenta - e espinhosa - aborrecência. Ainda tenho todos os álbums em K7/demo, CD ou vinil (menos o do Sleepwalkers, infelizmente... mas preciso tê-lo, discazo!).” Marcus Losanoff é jornalista e tem o programa de rádio CAMBIO, dedicado ao rock hispânico e lusitano.

http://cambioradio.blogspot.com.br/



Pin Ups - Time Will Burn (1990)

Pelvs - Peter Greenaway's Surf [Summer Version] (demo - 1991)

Sepultura - Arise (1991)

DeFalla - Kingzobullshitbackinfulleffect (1992)

Little Quail and the Mad Birds - Lírou Quêiol en de Méd Bãrds (1992)

Killing Chainsaw - Killing Chainsaw (1992)

Virna Lisi - Esperar o Quê? (1992)

Pin Ups - Gash [A Mellow Project by Pin Ups] (1992)

Sepultura - Chaos A.D. (1993)

Legião Urbana - O Descobrimento do Brasil (1993)

Pato Fu - Rotomusic de Liquidificapum (1993)


OZ - Très Bien Mon Ami (demo - 1993)

Second Come - You (1993)

Pelvs - Peter Greenaway's Surf (1993) 

Pin Ups - Scrabby? (1993)

Second Come - Super Kids, Super Drugs, Super God and Strangers (1994)

Low Dream - Between My Dreams And The Real Things (1994)

Garage Fuzz - Relax in Your Favorite Chair (1994) 

Chico Science & Nação Zumbi - Da Lama ao Caos (1994)

Raimundos - Raimundos (1994)

Skank - O Samba Poconé (1995)

Pato Fu - Gol de Quem? (1995)

Dash - Uh-La-La (1995) 

Maria do Relento - Maria do Relento (1995)

DeFalla - Top Hits (1995)

Maskavo Roots - Maskavo Roots (1995)

Planet Hemp - Usuário (1995) 

Graforréia Xilarmônica - Coisa de Louco II (1995)


OZ - Sangre de Dios (1995)

Raimundos - Lavô Tá Novo (1995)

Pin Ups - Jodie Foster (1995)

Sepultura - Roots (1996)

O Rappa - Rappa Mundi (1996)

Little Quail and the Mad Birds - A Primeira Vez Que Você Me Beijou (1996)

Chico Science & Nação Zumbi - Afrociberdelia (1996)

Pato Fu - Tem Mas Acabou (1996)

Planet Hemp - Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Pára (1997)

Charlie Brown Jr - Transpiração Contínua Prolongada (1997)

Low Dream - Reaching For Baloons (1996)


Piu Piu & Sua Banda - Antibiótico (1997) 

Maria Bacana - Maria Bacana (1997) 

Wander Wildner - Baladas Sangrentas (1997) 

Racionais MC's - Sobrevivendo no Inferno (1997) 

Funk Fuckers - Bailão Classe A (1997)

Comunidade Nin-Jitsu - Broncas Legais (1998) 

Otto - Samba pra Burro (1998)

O Rappa - Lado B Lado A (1999)

Los Hermanos - Los Hermanos (1999)

The Cigarettes - Bingo (1997)


Mundo Livre S/A - Por Pouco (2000) > eu amo esse disco, tinha que incluí-lo...

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Eu acrescentaria quatro discos à essa lista de grandes jóias do rock brazuca (na verdade esse artigo lista 122 discos. Mas quem liga? Detalhes...):

Acabou La Tequila: “O som da Moda”, PingPong Discos, 1999 – Rio de Janeiro.

Acústicos & Valvulados: “Acústicos & Valvulados”, Antídoto – Porto Alegre.

Alvin L: “Alvin L”, BMG-Ariola, 1997 – Rio de Janeiro.

“Paredão”: reunindo cinco bandas cariocas (Sex Noise, Poindexter, Profeta, Kamundjangos e The Funk Fuckers) e uma curitibana (Resist Control) que retratam bem a onda do rap-core-metal que estavam bombando em meados dos anos 90. Me parece ter sido também uma das última tentativas de uma grande gravadora (EMI) de apostar num som nitidamente roqueiro (pesado, acelerado e boca suja). Mérito do executivo João Augusto, que anos depois criaria a Deck Discos. Os Kamundjangos seguem na ativa, agora apenas como Djangos, e o Plínio Gomes, vulgo “Profeta”, é hoje o produtor responsável por muitos dos melhores discos que estão na área fronteiriça entre MPB e rock / pop – apostaria até que depois da “era Kassim”, estamos adentrando a “era Plínio Profeta” em termos de padrões para artistas finos e versáteis. “Paredão” foi lançado em 1996.


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Outro dia rolou uma discussão interessante no feicebuqui. Lá pelas tantas me ocorreu que de repente o produto "banda" não é mais tão interessante pros músicos, e arrisco 2 palpites pra explicar isso:

1) as gravadoras não estão valorizando esse formato, não parecem estar interessadas em investir nisso.

2) os músicos foram obrigados a "se agenciar", a planejar sua própria carreira (algo que antes um produtor, em geral funcionário da gravadora, faria por ele) e com isso os "mutirões" (seja fazer um show / turnê, seja pra gravar um disco) são vistos como "projetos", e não como "empregos" (que foi o que uma banda significou, em outros tempos).

O que acho meio triste é que, a meu ver (é só uma impressão), os músicos estão apostando pouco nos "projetos".Parece que se o projeto não dá resultado num prazo relativamente curto, ele já é jogado pra escanteio, e o cara salto pro próximo - com outros parceiros, outros formatos, outras sonoridades.

Um caso prático: o PANAMERICANA. Depois de meses de burburinho, só tive notícia de um show no Rio de Janeiro: na verdade 2 datas, sexta e sábado de um mesmo final de semana, no Oi Futuro (que tem uns 100 lugares). Fui lá na sexta, logo depois do almoço, e os ingressos haviam se esgotado.

No fim das contas fiquei sem escutar... até hoje minha curiosidade não foi satisfeita. E ao que parece o projeto foi engavetado.


"Panamericana, formada por ninguém menos que o ex-guitarrista do Legião Urbana, Dado Villa-Lobos; o ex-baterista dos Titãs, Charles Gavin; o ex-baixista do Barão Vermelho, Dé Palmeira; e o ex-vocalista do Hojerizah, Toni Platão.

O repertório traz versões em português de canções de pop e rock argentino e uruguaio, assinadas por autores do rock nacional clássico dos anos 1980, como Alvin L, Humberto Effe, Fausto Fawcet, Dé Palmeira, Sergio Britto e Moska. Entre os compositores argentinos estão Luis Alberto Spinetta, com "Barro Talvez"; Charly García, com "Passageira em trance"; Sumo, com "Mañana en el Abasto" e Fito Paez, com "Mariposa Tecknicolor". Já os destaques uruguaios são La Vela Puerca, com "Zafar" e No Te Va Gustar , com a música "Angel con campera"."


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Pra haver cena tem que existir lugares onde as pessoas se encontram, tocam e trocam informações - e não surgiram mais casas ou bares, como acontecia antes. Por quê? Porque a cena não acontece mais como acontecia. Os jovens, protagonistas dessa cultura alternativa, estão se encontrando nas ruas, ocupando as praças e parques. Os nomes das bandas não interessam mais: são pessoas tocando, sem ego.

O mundo acabou! É preciso reinventar a si mesmo.

Tudo!, o modo como fazemos e apresentamos a musica. esquecer os velhos caminhos! Sair de casa! sair da cidade! Largar o conforto de uma vida de mesmice!”

Wander Wildner, nesse mesmo papo feicebuquiano




Para acompanhar o Rock Underground Brasileiro: um guia de blogs & programas de rádio (cap. 10, apêndice da H.d.R.U.B.p.M.A.G.)

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Os capítulos desta “História do Rock Underground” que tratam do que rolou nos últimos 15 anos foi organizada como uma espécie de guia turístico do Rio de Janeiro. Agrupei as bandas em torno dos lugares onde costumam fazer shows, esperançoso de ajudar o sujeito recém desembarcado na cidade a encontrar a sua turma, em termos de “sub-gênero” roqueiro.

Mas hoje em dia acho que a fonte primária de quase tudo mundo é a internet. Então eis alguns sites bacanas para se incluir nos favoritos:


La Cumbuca:
é um blog sem muito blábláblá, focado na divulgação de bons shows, resgate de registros fonográficos obscuros (já digitalizaram muitas demos importantes) e distribuição da música contemporânea (aproveitando que muitos artistas já entenderam que é besteira lutar contra o download gratuito). A equipe é formada por Renato Otaner e Fábio Fernandes.

Fita Bruta:
É um site sobre música pop brazuca e gringa, criada por uma turma bem jovem e “estética-ideologicamente” sintonizada com o Comuna, ponto nevrálgico da boêmia hipster carioca: César Márcio do IndieNation / Lo-Fi Dream, Lívio Vilela, Matheus Vinhal e Raphael Abreu do Bloody Pop, Túlio Brasil (que foi do La Cumbuca) e Yuri de Castro do Sonar. Menos focado na agenda cultural da cidade e mais em resenhas & artigos.

Banda Desenhada:
Um site dedicado exclusivamente a loooongas e espertas entrevistas. Márcio Bulk é um cara interessado basicamente em MPB, mas que adora os artistas mais ousados e versáteis, muitos deles egressos da cena roqueira. Além disso o Márcio é um sujeito muito bem informado, e que sempre recruta grandes fotógrafos para acompanhá-lo em suas entrevistas (abaixo, retrato do duo post-rocker experimental Bemônio feito por Daryan Dornelles).


Rock Press:
Foi uma publicação impressa independente e de peso, em especial no cenário carioca, entre 1996 e 2005. Daí em diante passou a existir apenas no mundo virtual. Seu lema é “maximum garagecore ska punk´n´soul”.

Rock Em Geral:
É o portal criado pelo jornalista Marcos Bragatto, um veterano da imprensa especializada – e um cara um tanto careta, em termos de gosto pessoal, mas essencial na luta pela música onde reina a guitarra elétrica.


Poeira Zine:
É uma tremenda revista de rock que começou como fanzine, e continua atuando como fanzine no melhor dos sentidos: textos apaixonados e muito pessoais, um fôlego enciclopédico quanto aos detalhamento das informações, desdém pela pauta de “grandes acontecimentos” da indústria fonográfica, mas ao mesmo tempo compromisso com a cena atual – o leitor desavisado pode pensar, folheando suas páginas, que só se fala de rock “velho”, mas não é nada disso: há sempre resenhas dos novos lançamentos.


O PZ é dedicado ao rock´n´roll no sentido mais tradicional: nada de fusões com música eletrônica ou reinvenções de música folclórica. O lance aqui é principalmente hard rock, progressivo e “rock clássico”. Fiquei abestalhado quando descobri que o editor (e autor de 90% dos textos), Bento Araújo, tem apenas 37 anos! Eu o imaginava como uma versão paulista, saudável, sã e hétero do Serguei, tamanho o conhecimento que ele demonstra ter a respeito dos dinossauros do rock. Mas o cara é mesmo apenas um excelente jornalista!


O Poeira Zine é publicado apenas em papel, bimestralmente, e distribuído em lojas de discos bacanas, como a Baratos da Ribeiro (Copacabana), Sempre Música (Catete e Ipanema) e Headbanger (Tijuca). Mas Bento disponibiliza na web um podcast


e um programa de YouTube, chamado Heavy Lero (com o Gastão, ex-VJ da MTV, dos tempos áureos da emissora).



Scream & Yell:
foi um dos fanzines mais legais dos anos 90, fundado pelo paulista Marcelo Costa. Desde 2000 tornou-se um portal feito com muito profissionalismo e capricho, dedicado ao rock´n´roll – não apenas “alternativo”, mas como seus colaboradores mais antigos são caras que curtiam muito pós-punk e britpop quando adolescentes, eles mandam muito bem nesta seara.



PROGRAMAS DE RÁDIO:

O poder do rádio foi ameaçado pelos novos hábitos tecnológicos, mas pipocam na web programas interessantes. Apesar da indústria estar lutando para postergar esse dia, ainda veremos os celulares e carros com gadjets que nos permitirão “sintonizar” não as ondas de FM ou AM, mas qualquer web rádio que quisermos, diretamente via a internet.

Até porque as corporações jamais conseguirão desfazer o laço afetivo que existe entre os velhos ouvintes de rádio e os locutores que lhes apresentaram suas canções e bandas prediletas. Os roqueiros cariocas da “velha guarda” se lembram da Eldopop, que foi inaugurada em 1971 pelo lendário disc-jóquei Big Boy, e que durou até 1978. (Uma idiossincrasia interessante da Eldopop era a atenção carinhosa que dedicava às banda alemãs de rock progressivo, como Eloy , Omega, Embryo e Triumvirat. Isso ajuda a explicar a grande influência do krautrock– a ala mais esquisitona dessa turma, que inclui o Kraftwerk, Can, Amon Düll, Guru Guru, Harmonia, Cluster, Faust etc – no underground brazuca, a despeito do interesse por esse som ter diminuído tanto com o passar dos anos, mesmo em sua terra natal. É impressionante a quantidade de LPs de rock alemão que foram lançados no Brasil, dada a quantidade de discos ingleses e norte americanos que permaneciam inéditos por aqui. O selo Continental lançou dois volumes da coletânea “Best of German Rock”, garimpadas do catálogo da Brain, selo importantíssimo, onde o produtor Conny Plank pôde fazer todas as loucuras que foi capaz de imaginar. A primeira dessas antologias, de 1978, trazia Grobschnitt, Jane, Neu!, Birth Control, Novalis e Gate.) Importante citar também o programa “Sábado Som”, transmitido pela Rede Globo e apresentado por Nelson Motta. Durou pouco, mas teve grande impacto – estreou em abril de 1974, exibindo na íntegra o “Live at Pompeii” do Pink Floyd.



Por muito tempo professor Newton Alvarenga Duarte manteve secreta a sua identidade de Big Boy, o irreverente e hiperativo disc-jóquei, guru de toda uma geração de roqueiros. Nem os mais cabeludos alunos do Colégio de Aplicação da UFRJ desconfiavam. Big Boy estava na área já fazia tempos: em 1966 ele reformulou a Rádio Mundial (860 AM), que passou a disputar com a Rádio Tamoio a preferência do público jovem afeito ao rock e ao soul. No início dos anos 70 a literalmente grande e ainda garoto (nasceu em 1943) Newton tinha três programas regulares na emissora: “Big Boy Show”, “Ritmos de Boite” e “Cavern Club”, dedicado exclusivamente aos Beatles. Aliás, o radialista conheceu pessoalmente o Paul McCartney quando esteve em Londres, em 1966. Reza a lenda que Macca prometeu que enviaria todos os lançamentos dos Fab Four, em primeira mão, para Big Boy, a começar pelo Sgt. Peppers. No dia primeiro de junho ele botou a bolacha pra girar em seu programa, e os ouvintes foram para a portaria da emissora aos prantos, emocionados com o lançamento.


Big Boy era incansável: atuou também nas rádios de São Paulo (Rádio Excelsior), escreveu para diversas revistas e jornais e participou de programas de TV (tinha um bloco de clipes no Jornal Hoje da Globo e apresentava o “Papo Pop” na Record). Também produziu os históricos “Bailes da Pesada” (principalmente na Zona Norte, mas também no Canecão), com outro lendário DJ, o Adhemir Lemos, e seu “suplente” nos programas era o DJ Pedrinho Nitroglicerina. Todos eles lançaram coletâneas em LP, com os hits de suas performances nas festas– e discos de Big Boys pode-se degustar um pouco do seu estilo de locução, e escutá-lo berrar “helloooo crazy people!”. Infelizmente Big Boy não era muito cuidadoso com a saúde, e faleceu em decorrência de uma crise asmática, num hotel em São Paulo, em 1977 – deixando muita saudade, 2 filhos e uma coleção de 20 mil discos.


Outro programa de peso na primeira metade dos anos 70 era o “60 Minutos de Música Contemporânea”, da Rádio Jornal do Brasil(940 AM), que usava como vinheta de abertura um trecho de “Tarkus”, do Emerson, Lake & Palmer. Diariamente (à exceção de domingo), entre as 16 e as 17h, Eliakim Araújo, Sérgio Chapelin ou Alberto Carlos de Carvalho (dependendo da época) apresentavam as novidades do rock gringo, com total liberdade – às vezes o LP era simplesmente tocado na íntegra (e aos sábados tocava-se preferencialmente apresentações ao vivo, eventualmente até bootlegs. Apesar de falta de fontes oficiais para esclarecer a equipe responsável pelo programa, parece que foi idealizado pelo pesquisador musical Tárik de Souza– autor de diversos livros sobre música, ele escreveu para a Som 3 (importante revista dos anos 70, especializada em rock) e atualmente apresenta o programa “Bossamoderna” na Rádio MEC.


Nos anos 80 quem teve um papel fundamental no rock brasileiro, e carioca em particular, foi a Fluminense FM. Apesar de presente no dial desde 1972, foi a partir da reformulação feita em 1982 que ela passou a ser conhecida como “A Maldita”, tamanho o compromisso que tinha com o rock´n´roll. Foi a locutora Selma Coiron quem entrou no ar, anunciando a nova linha editorial da emissora, conforme os planos dos diretores Amaury Santos, Sérgio Vasconcellos e Luiz Antonio Mello – todos com menos de 30 anos. Entre os méritos da emissora estão a liberdade dada aos programadores (que podiam tocar fitas demo ou deixar um disco rolando na íntegra, de cabo a rabo), os programas dedicados à temas ou gêneros específicos (como o “HellRadio”, do Tom Leão, do Rio Fanzine, e André X, do Plebe Rude) e o apoio ou patrocínio dado aos shows e festas. Dois livros importantes a respeito: “A onda Maldita” (de Luiz Antonio Mello, 1992) e “A Rádio Fluminense FM: a porta de entrada do rock brasileiro nos anos 80” (de Maria Estrella, 2006).

A Rádio Maldita tinha tanta independência em relação aos departamentos de marketing das gravadoras que sua lista de “sucessos” incluía nomes completamente ausentes do resto do Dial: Arte no Escuro, Sexo Noise, Mercenárias, Vid & Sangue Azul (do importante guitarrista Di Castro), A Grande Trepada etc.  E como suas antecessoras, também tinha programas onde se tocava um único artista, ou um disco inteiro, sem intervalos, como o “Módulo Especial” (diariamente às 13h)


Um dos radialistas veteranos que continuam atuando herói e exemplarmente é o Maurício Valadares. MauVal, como é carinhosamente chamado por sua legião de fãs, é um ativista-guerrilheiro ultra condecorado por seus serviços prestados á boa música, com ênfase no rock´n´roll e no reggae / dub, suas grandes paixões. Sua trajetória como radialista começa na Rádio Fluminense, nos anos 80 (com o programa “Ronca Tripa”), passa pelas rádios Panorama (com o “Radiola”), Globo FM, Imprensa (já como “Ronca Ronca”), Rádio Cidade, Oi FM e deságua no mundo virtual. Você pode escutar o RONCA RONCA na próxima terça-feira, a partir das 20h, no site:




Valadares lançou em 2011 um compacto 7” com gravações de Tulipa Ruiz, Otto, Do Amor e Cidadão Instigadotocando ao vivo no seu programa RONCA RONCA.


Encerro recomendando o Geléia Moderna, programa transmitido pela Rádio Roquette Pinto (94,1 FM, das 15 às 17h, todos os sábados) e disponível para audição em stream no site:

Os apresentadores José Brant e Jorge Lz possuem um apuradíssimo gosto musical, e devem estar na casa dos 40 anos. Brant é um apaixonado por discos de vinil e está sempre zanzando pelo mundo, em busca dos novos lançamentos em bolachão, e Jorge Lz é curador de vários projetos bacanas, que levam as novas bandas para centros culturais como o Oi Futuro, CCBB e Caixa Cultural. Além disso a Roquette Pinto tem um auditório e de vez em quando o programa promove shows ao vivo.


Curiosamente, o programa anterior, o Acorde, é feito por um pessoal uma década mais jovem, o Ricardo Schott e o Leandro Souto Maior, mas é menos afeito ao rock contemporâneo, sendo mais focado nos medalhões do gênero. Ricardo e Leandro são jornalistas de cultura do Jornal O Dia, e, sempre que dá, descolam um espaço lá para falarem do que anda rolando de legal na cena roqueira da cidade.

EXPLOSÃO ROQUEIRA NO SUBÚRBIO:

Há poucas semanas o Ricardo Schott publicou um notícia no jornal O Dia, sobre uma nova cena roqueira na Zona Norte da cidade:

“Nos anos 80, o adolescente Daílson Sabino era muito fã do Kiss. Tão fã que, um dia, resolveu ir à escola com o álbum ‘Creatures of The Night’ (1983) só para exibi-lo aos colegas. Foi parar na coordenação. “A diretora do colégio olhou a capa e falou: ‘Parece coisa de filme de terror’. Não teve jeito,meu apelido na escola virou Terror”, recorda.

Atualmente conhecido como DJ Terror, ele promove noites roqueiras que passam por cantos variados do Rio. E leva guitarras e distorções para Brás de Pina, para a frente do bar Subúrbio Alternativo, que inaugura hoje com show da banda Noise Under Control e um quinteto de DJs do barulho (Lex, Luciano Cabeção, Alex França, Roger S e ele mesmo). Tudo na rua. Nas picapes, tem Kiss (claro!), Black Sabbath, Iron Maiden, Smiths, Nirvana e outros recentes.

Terror já havia feito um experimento no mesmo local — antes de transformá-lo no Subúrbio Alternativo — convidando bandas para seu aniversário. “Deu certo, e resolvi prosseguir. Não há, no Rio, espaço para o novo. As lonas são bancadas com nosso dinheiro, mas não dão lugar para o que não é rentável”, lamenta. “Em Brás de Pina, tem uma molecada que usa camisetas de bandas. Mas nos trailers da área só rola pagode. Cadê o rock?”.

O show e o som são gratuitos, mas Terror conta: “Se alguma banda ou DJ quiser passar a sacolinha pelo público, está liberado”. E nem só de rock vive o lugar: no sábado, às 19h, tem a festa Brazucalizando, com som da MPB ao mangue-beat. No domingo, às 16h, o rock e as bandas novas voltam com o projeto Ensaio Aberto ZN.”

O SUBÚRBIO ALTERNATIVO fica na Rua Iguaperiba 155, em Brás de Pina.



Recentemente notei o anúncio de outras farras roqueiras, para lá do Túnel Rebouças:

A festa INDIE NITE FEVER acontece no Seven Rock Bar, na Rua General Olímpio, 409, nalgum lugar entre Nilópolis e Itaguaí. A edição que vi anunciada tinha como atrações as bandas Tequila e iO – esta já comentada em outro artigo:

Em Bento Ribeiro tem há um tal Rock Bar, onde o Domestic Junkies fez show em meados de fevereiro. Fica na Praça Manágua número 69 – o dono é um entusiasta das novas bandas com material autoral.

"A Era do Disco", por Lorenzo Mami (fragmentos)

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A ERA DO DISCO:
O LP não foi apenas um suporte, mas uma forma artística
Por Lorenzo Mammi, prestigiado professor da USP

Uma interessante resenha foi publicado no blog “História Cultural” da Gazeta do Povo, assinada por André Egg:

E aqui temos uma interessante entrevista de Lorenzo Mammi feita por Álvaro Machado: 

(FRAGMENTOS – o artigo na íntegra pode ser lido na edição 89 da Revista Piauí, de fevereiro de 2014)

O disco extraiu desse conjunto confuso de sensações e acontecimentos apenas o som, e o colocou num objeto que podia ser levado para casa e escutado à vontade, com qualquer roupa, em qualquer atitude. É um duplo isolamento: do som, em relação à performance; do ouvinte, em relação ao rito social da escuta. O disco inaugura a escuta solitária, no recanto do próprio quarto – análogo, nisso também, ao códice em relação ao rolo [o autor inicia o artigo debatendo transformação dos hábitos de leitura ao longo da história.] No entanto, a escuta de um disco nunca será tão solitária como a leitura de um livro: o disco faz barulho, e esse barulho nos envolve, mesmo que não seja ouvido mais ninguém. O livro se dirige à mente; a música precisa passar pelo ouvido, envolve o corpo. Pelo corpo, o som do disco remete a um espaço comum – da festa, do rito, da marcha. Há uma sociabilidade na música que o disco não abole. Ele apenas a comprime, a torna portátil, permite que seja fruída sem a presença de alguém.



(...) Com a repetição mecânica que o disco consente, o aspecto cíclico passa a dominar. A volta da capo já não é apenas um recurso interno da composição, e sim a característica fundamental da audição: o disco é feito para se ouvir de novo.

(...) A duração limitada dos primeiros discos teve, a meu ver, duas conseqüências: a primeira é o predomínio do gênero canção. Três minutos é um tempo muito curto para desenvolver uma estrutura suficientemente rica no campo da música instrumental, mas não para estabelecer uma relação satisfatória entre texto e melodia. Certamente, foram as exigências de gravação que impuseram o padrão de primeira parte, segunda parte e da capo sobre todas as outras formas de canção, mas essa já era a forma mais comum do Lied, da ária de ópera e de muita tradição folclórica. A maioria dos Lieder de Schubert e de Schumann durava mais ou menos três minutos, e era baseada no princípio de que a linha melódica deveria se adequar perfeitamente ao sentido poético e não poderia ser desenvolvida muito além dele, sob pena de perder a correspondência com o texto. Nesse sentido, Schubert não trabalhava de forma muito diferente de Paul McCartney ou Chico Buarque – para todos os outros gêneros musicais, as diferenças entre música erudita e música popular são bem mais marcantes. Enfim, de todos os formatos tradicionais, a canção romântica é a que mais facilmente podia se adequar às exigências do novo meio. A ópera,  gênero então mais popular, também foi segmentado em trechos curtos, na prática canções, e nessa veste determinou o surgimento do primeiro grande star do disco, Enrico Caruso. Por outro lado, talvez não seja por acaso que um dos maiores instrumentistas de jazz dessa época, Louis Armstrong, tenha se tornado mais popular como cantor do que como trompetista. Houve um “século da canção” (para retomar o título de um livro de Luiz Tatit) porque houve um século do disco.


(...) Para o ouvinte acostumado às formas tradicionais de socialização musical, o rádio deveria representar uma novidade menos radical, mais próxima ao evento musical oitocentista: transmitia um acontecimento em ato, ainda que a distância.

(...) Tudo ocorria como se o rádio unificasse as casas: na transmissão radiofônica, sempre há alguém do outro lado do aparelho (desse ponto de vista, o rádio é um ponto médio entre o disco e o telefone), e outros do mesmo lado, diante de outros aparelhos. Dos três aspectos fundamentais do disco – repetição, limite de duração, isolamento -, o rádio tornava impossível o primeiro, eliminava o segundo e relativizava o último. Funcionou como uma espécie de câmara de compensação, filtrando os hábitos musicais do século XIX  para a escuta do século XX. Para que o disco alcançasse plena autonomia como forma de expressão, no entanto, era necessário mais um passo.

Os primeiros discos de longa duração, em vinil, forma lançados nos Estados Unidos em 1948: mais de vinte minutos de cada lado, suficientes para uma sinfonia média do século XVIII. Até nas grandes obras românticas, raramente um único movimento supera essa extensão. Quanto á música popular, a vantagem não foi apenas a possibilidade de desenvolver composições mais complexas: mesmo respeitando a duração já tradicional de 3 ou 4 minutos para cada peça, agora era possível montar as faixas numa sequência pré-estabelecida, segundo escolhas refletidas.

(...) Mas não foi apenas o indiscutível avanço técnico que fez do disco em vinil o agente de mudanças revolucionárias: foi sua associação com a nascente sociedade de consumo. A posição de cada indivíduo num contexto social passa a ser determinada pela posse de certos objetos. Nenhum deles era tão poderoso quanto o disco para encarnar formas específicas de sociabilidade, porque os discos já eram, como vimos, sociabilidade objetivada.As gerações que cresceram nas décadas de 50, 60 e 70 (a era de ouro dos LPs) basearam suas escolhas existenciais nos discos. Não apreciavam jazz, pop, folk ou rock: ERAM jazz, pop, folk ou rock. As estrelas da música popular tinham autoridade de poeta, carisma de líderes revolucionários e charme de atores de Hollywood.


Nunca, talvez, desde a época de Beethoven, a música contara tanto. Os enormes lucros que as empresas alcançaram permitiram gravações sempre mais sofisticadas, sessões mais prolongadas e boa dose de experimentação: num mercado em transformação muito rápida, era melhor arriscar um fracasso lançando um disco muito ousado do que ficar para trás. Capa, encarte, textos de acompanhamento, estratégia de lançamento, roupa e penteado dos músicos: tudo passou a ser relevante.

(...) Embora não estivesse entre os escopos primários da indústria fonográfica, a música erudita contemporânea também se beneficiou dos enormes avanços nas técnicas de gravação. (...) A passagem de uma cultura musical centrada no concerto para uma centrada na gravação permitia misturar fontes acústicas e eletrônicas; criar, pelos artifícios da superposição, conjuntos improváveis, às vezes monumentais, que seria muito difícil ou excessivamente caro reunir fisicamente; e executar passagens árduas e insólitas com uma precisão quase impossível ao vivo.

Foi nessa época e por esses meios, muito mais do que pelas vanguardas do começo do século XX, que a música contemporânea alcançou sua plena autonomia em relação á tradição clássico-romântica, quanto a recursos, formas e modalidades de escuta. Foi nessa época, provavelmente, a melhor música erudita do século. Mas é dessa época também o melhor jazz, do bepop ao free; quase todo o rock relevante, de Elvis aos Clash; a bossa nova e o auge da MPB; Janis Joplin e Maria Callas; a melhor Ella Fitzgerald e o melhor Frank Sinatra. E, num lugar que é só deles, são dessa época os Beatles.

O momento em que os Beatles decidira, no verão de 1966, abandonar as apresentações em público para se tornar uma banda de estúdio marca o ápice da era do disco.


(...) Há certa incontinência nesse ir sempre mais além, lambuzar-se de sons, sobrepor imagem a imagem, e ao mesmo tempo comprimir-se num espaço apertado, constantemente ombro a ombro co dezenas de outros (figuras ou sons). Como se o disco fosse um universo de relações massificadas, porém excepcionais, um mundo introjetado ou uma interioridade em erupção. De fato, massificação e singularidade se tornam nele princípios conciliáveis. Os movimentos sociais da década de 60 não foram anticonsumistas, muito pelo contrário: identificaram-se, sob muitos aspectos, com a posse e o uso de objetos específicos – roupas, discos, cartazes, drogas. O consumismo daquela época foi capitalista no sistema, mas anticapitalista no desejo. Ilimitado e inesgotável, portanto utópico. Nesse sentido, o LP em geral, e Sgt Pepper´s em especial, foi a expressão mais plena da dialética interna à sociedade de consumo. A obra prima dos Beatles não foi apenas o disco dos discos. Foi a mercadoria no auge do seu esplendor, no mais alto grau de reflexão e autoconsciência.


(...) Há ainda um outro fenômeno, bastante curioso: o revival, por parte de um setor minoritário, mas culturalmente consistente da música popular, da gravação em vinil. Em si, o meio é claramente obsoleto, incômodo e um tanto caro em relação ao que a tecnologia atual coloca à disposição. Pode ser apenas uma moda passageira. Mas talvez essa retomada se justifique pela força de um prestígio e de uma qualidade consideradas insubstituíveis, e portanto impermeáveis a qualquer avanço técnico – como o piano de cauda em relação a qualquer teclado ou a pintura a óleo em relação a qualquer plotagem. Quase sempre, um gênero ou uma técnica adquirem plenamente o estatuto de grande arte quando desaparece o seu contexto original e sua própria necessidade produtiva.Talvez estejamos adquirindo a consciência tardia de que o LP não foi apenas um suporte, mas uma forma artística. Como a sinfonia e o romance.

Setlist na expo da X Casa, aqui na Vila do Largo

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A Vila do Largo já foi um cortiço, mas parece que nasceu como estrebaria da fazenda que havia onde hoje é o Parque Guinle. Há cerca de 15 anos uma transformação começou a acontecer ali, resultando numa vila super charmosa, onde convivem escritórios, ateliês, estúdios e residências.

A X Casa é um ateliê que vira galeria evento-experimental, tocada pelo Milton P. B. Neto, que avisa: "a proposta é usar o espaço para ideias novas de forma fácil, fazer circular produção dos artistas".

Neste último sábado, 29 de março, ela recebeu o coletivo co.dorna, composto pelos artistas Ingrid Bittar (Britta), Raphael Couto e Tahian Bhering.


 Nos próximos dias Milton volta à sua rotina numa grande empresa, onde trabalha na área de comunicação (ele é administrador de formação), e a casa volta a ser apenas seu lar, mas no próximo final de semana ele retoma sua persona artista plástico e curador. Serão mais 3 sábados, sempre com uma programação musical em paraleloà exposição e às performances. Participarão o Zozio Projeto, a rádio virtual Caipirinha AppreciationSociety e os artistas do selo Transfusão Noise Records.

Mas ontem a trilha sonora ficou por minha conta. E, otimista que sou, imagino que a seleção tenha agradado, e boto na roda o longo setlist (foram umas 6 horas de som), pra que a rapaziada possa correr atrás dos bandas que fizeram a sua alegria. Você vai notar que há muitos artistas da cena local. Estava especialmente ansioso pra escutar as versões para Belchior, que foram lançadas esta semana no disco tributo idealizado por Jorge Wagner. Disponível para download gratuito no site Scream & Yell:



Ah, e não posso deixar de falar do Koki Bistrô, inaugurado ontem mesmo, nos fundos da Vila. O cardápio foi escondidinho de camarão, feijão tropero com costelinha, escondidinho de carne seca e mini-feijoada. Tudo servido em copões individuais – ao preço de R$ 10,00. (Eu comi 4 porções, de tão fastástico que estava!) O vinho oferecido era o argentino  Alfredo Roca – pagava-se 15 pratas pela taça e 40 a garrafa. Rodrigo Oliveira é biólogo, mas há anos trabalha com importação de bebidas e produtos alimentícios, suprindo alguns dos melhores restaurantes cariocas com iguarias selecionadas. Mais: ele é um cozinheiro mega talentoso & caprichoso. Para vê-lo em ação, confira a edição do programa “Que Marravilha: Revanche”, que vai ao ar na GNT na quinta-feira de cinzas, dia 17 de abril. Já adianto que o super chef Claude Troisgros perdeu essa peleja.... mas na esportiva: até incluiu o prato do Kiko no cardápio de uma de suas casas!


 E vamos aos sons:

Seis com Casca – Betty Blue (Gabriel Yared, tema do filme homônimo)

Ekvát – babu amel

Karnak – Iosef

Nacho y los Caracoles – escuadras (Adriana Calcanhotto) (Argentina)

Bigott – pachanga

La Outra – por ejemplo (Uruguay)

Phillip Long – como nossos pais (Belchior)

Do Amor – Piracema

Pata de Elefante – gigante

Juvenil Silva – meu freewheelin do Bob Dylan

Brian Auger & Julie Tippett – don´t let me be misunderstood

Rodriguez – sugar man

Valle de Muñecas – apache (Argentina)

Axiom Funkcronomicon – IF 6 was 9 (Jimi Hendrix)

Fiero – valeu (Argentina)

Amplexos – o homem

Mimi Maura – el dia de mi muerte (Puerto Rico)

Suffí – de algún sueño (Argentina)

Ney Matogrosso – freguês da meia noite

Sting & Aswad – invisible Sun (The Police)

Los Esquejes – come as you are (Nirvana) (Argentina)

Rob Wasserman – (a can´t get no) satistaction (Rolling Stones)

Tono – UFO

Karnak – zoo

Amplexos – festa

Los Fabulosos Cadillacs – basta de llamarme así (Argentina)

Juvenil Silva – de volta para o futuro em Recife

Bande Cine – cha cha cha du loup (Serge Gainsbourg)

Projecto Fuga c/ Adolfo Luxúria Canibal – rainy trip (Portugal)

Profecto Fuga c/ Ana Deus – hermeticamente fechado (Portugal)

Cineplexxx – mejor (Copacabana mix) (Argentina)

Graveola & O Lixo Polifônico – farewell love song

Maglore – vamos pra rua

Nevilton – sujeito de sorte (Belchior)

Devotchkas – gasoline serpent

Brasov – resgate em Honduras

Anelis Assumpção – bola com os amigos

The Jolly Boys – rehab (Amy Winehouse)

Los Fabulosos Cadillacs – hoy (Argentina)

Pata de Elefante – vazio na cerveja

Tomba Orquestra – faixa 12

O Padre dos Balões – fritura

Bixiga 70 – deixa a gira girá

Amadou & Mariam – La realité (Senegal)

Tomba Orquestra – faixa 13

Beck & Seu Jorge – tropicália (Mário Caldato remix)

Mão de Oito – acorda

Kevin Johansen – McGuevara o CheDonalds (Argentina)

Cypress Hill – tequila sunrise

Mundo Livre S/A - o africano e o ariano

The White Dwarf – any colour you like (Pink Floyd)

Jovanotti – piove (Itália)

Massacre – 1984 (Argentina)

Letuce – medo de baleia

Pata de Elefante – Dorothy

Transmissor – fotografia 3x4 (Belchior)

Hurtmold – chepa

Los Coming Soon – Fernat tastes good (Chile)

Orelha Negra – Polaroid (Portugal)

No Te Va a Gustar – chau (Uruguay)

Curumin – selvage

Poliça – dark star

Los Esquejes – 7 nation army (White Stripes) (Argentina)

Coiffeur – imago (Venezuela)

SILVA – moleton

Astro – ciervos (Chile)

Camille – ta douleur (França)

Karina Buhr – ciranda do incentivo

Los Umbanda – oh, que será (Chico Buarque) (México)

Jorge Drexler – se va, se va, se fue (Uruguay)

Pharrell Williams – happy

Léo Cavalcanti – ouvidos ao mistério

Goran Bregovic – ya ya (ringe ringe raja) (Iuguslávia)

Stereo Total – wir tanzen im 4 eck (Bélgica)

tUnE yArDs – my country

Tulipa Ruiz – a ordem das árvores

Tony Mowod – on and on

Orelha Negra –a força da razão (Portugal)

Mashrou´ Leila – 3ubwa (Líbano)

Do Amor – minha mente

Campo-Formio – lord of the obstacles (Equador)

Easy All Star´s Radiodread – airbag (Radiohead)

Easy All Star´s Trillah – wanna be starting something (Michael Jackson)

Gustavito – Juriti

Tibério Azul – alquimista tupi

No Sé – united flying objects

De Phazz – sabbatical + better now

Fun Lovin´ Criminals – i´m not in love (10cc)

The The – that was the Day

Feist – gatekeeper

The Strange – long shadows

Jumbo – motocicleta (México)

The Balanescu Quartet – autobahn (Kraftwerk)
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Política e economia sem meia palavras

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Pra que falar da Copa, e do atraso olímpico nas obras que deveriam ser feitas para receber o evento?

Vamos falar da Tour do Rio 2014, competição de ciclismo que está programada para ocorrer um pouco depois.

O Rio de Janeiro perigava ser descredenciado pela União Ciclística Internacional porque o Estado não pagou os R$ 250 mil de prêmios vinculados a 2 eventos de 2013(Tour do Rio e Copa Rio de Ciclismo). O prazo vencia ontem, dia 31 de março. Cláudio Santos, da Federação de Ciclismo carioca, estava de dedos cruzados, aguardando o depósito que André Lazaroni, secretário de Esporte e Lazer, prometeu...


 E soube disso pelo jornal O Globo. Parei de comprar faz meses, mas adoro ler jornal impresso (detesto ler na web) e meu vizinho, que é assinante, sempre me repassa, depois que lê. Nem sempre tenho estômago pro me aventurar por suas páginas, mas aindahá ali algumas fontes confiáveis: uns colunistas fixos, artigos de colunistas convidados e o Ancelmo Goes, por exemplo. Mesmo que os editores costumem “esconder” informações depreciativas ao governo (do Cabral e do Paes, principalmente) e soltar fogos de artifício quando há algo positivo acerca de seus cumpadres, ou que sirva aos seus outros interesses comerciais.

E no último domingo, dia 30, o Globo alcançou novos patamares de cretinice jornalística. Saiu um “suplemento” imobiliário de umas 20 páginas que tinha um só intuito: convencer os leitores de que NÃO HÁ BOLHA no mercado imobiliário carioca. João Paulo Rio Tinto de Matos, presidente da ADEMI, assina um texto de meia página: “A cidade que amamos combina com trabalho, confiança e prosperidade. Não há lugar para pessimismo. (...) O mercado carioca vai muito bem. Números de 2013 comprovam isso.”

E por conseqüência serviu para vender um monte de empreendimentos das empreiteiras que, como não podia deixar de ser, pagaram por anúncios gigantescos ao lado das pseudo-matérias. Foi muita cara de pau: só entrevistaram funcionários de empreiteiras e imobiliárias, quando não os donos (Rubem Vasconcelos, presidente da Patrimóvel: “A Barra é um lugar onde um dia todos os cariocas vão morar.”). “Encontrar o imóvel que seja o seu estilo de vida já não é problema para o carioca. O mercado imobiliário vive um boom de diversificados lançamentos de empreendimentos, os quais, em sua maioria, oferecerem um valor agregado ao comprador”. (Tecla SAP: é cara pra diabo, mas é isso mesmo. Não adianta chorar.)


Ah se essa turma tivesse nariz de madeira... Não precisariam mais de varal em casa para estender a roupa. Rodrigo Caldas, vice-presidente da construtora Concal: “O Porto é o novo eixo de crescimento do Rio de Janeiro. Para o investidor, significa uma infra-estrutura e mobilidade urbana incomparável a qualquer outro lugar do Brasil”. Numa outra página daquele mesmo jornal, naquele mesmo dia,  o Ancelmo noticiava que uma funcionária da farmácia Homeonatural, depois de 22 anos na empresa, pediu demissão. Por quê? Até há pouco ela levava 3 horas no trânsito, indo para Ipanema e voltando para Água Santa. Mas de uns meses pra cá ela passou a perder MAIS do que o dobro do tempo: 7 (!!!) horas diárias enfurnada no ônibus! Um dia antes a Baratos da Ribeiro perdia um funcionário, que está se mudando para Belo Horizonte, em busca de um lugar onde seu dinheiro lhe permite morar melhor – na última semana ele teve de fazer hora num carrinho de cachorro quente porque havia um tiroteio rolando perto de casa.

O ápice do mau jornalismo (ou da falsidade ideológica) estava na página 24, na matéria entitulada “Os bons ventos chegam à Baixada”: “O município de Nilópolis desponta como um mercado promissor. Conforme aponta seu alto IDH (0.78%), o município apresenta um crescimento urbano ordenado, dispondo de serviços de qualidade de transporte, educação, saúde e lazer, e um baixo índice de desemprego.” A publicidade-disfarçada-de-matéria serve à Mega 18 Construtora, que está oferecendo 120 apartamentos de 3 quartos (uma delas é suíte), com churrasqueira na varanda e direito à uma vaga na garagem. E sabe quantos metros quadrados tem esse “palácio”? 76. Nilópolis é mesmo um lugar tão legal pra se viver, e com tantos empregos, que a própria matéria apresenta como vantagem extra do condomínio o fato de ser próximo (menos de um quilômetro) da rodoviária e da estação de trem! Como diria o Ancelmo: parece piada. E é.

Aparentemente as construtoras estão com medo de que seus lucros diminuam, mas o setor, com tanta ajuda institucional, tem muita gordura pra perder... A João Fortes e a Plarcon Engenharia estão construindo um complexo hoteleiro no distrito de Secretário, em Petrópolis – para desespero dos ambientalistas, e dos globais em geral, que se escondem por lá quando querem fugir da grande metrópole -, de proporções faraônicas: são 11 milhões de metros quadrados, ocupando vários trechos de montanha, onde caberiam cerca de 1.540 campos de futebol como o do Maracanã.

O mesmo jornal publicou matéria aparentemente positiva sobre o aumento da renda no Rio de Janeiro, comparado a outros estados. Comparando fevereiro último com o desempenho do mesmo período de 2013, a alta foi de 6%. Abaixo dessa notícia há a tabela de indicadores econômicos, onde lê-se que a inflação medida pelo IBGE foi de 5,68% e o IGP-M (FGV) foi de 5,76%. Quanto sobra de aumento da renda? 0,32% num caso e 0,24% no outro.


E sabemos o quanto esses medidores de inflação são furados. Ontem eu fiquei abestalhado com o preço de um croissant, no quiosque de uma galeria comercial na Tijuca: R$ 5,5! Os aluguéis em Botafogo aumentaram 60,8% no último ano. O acumulado entre 2010 e 2012, no município do Rio, era de 194% de alta no mercado imobiliário! E ilustrando com casos específicos, o cenário pode ficar ainda mais arrepiante. Outro dia estive num apartamento na Rua Souza Lima, quase esquina com Bulhões de Carvalho, no Posto 6 (divisa entre Copa e Ipanema). Apê de andar inteiro, 4 quartos e uma sala maior do que a maioria dos lugares onde já morei. Há 36 meses atrás o inquilino pagava o mesmo valor que eu pago hoje, num “apertamento” de 2 quartos e 1 banheiro, com cozinha americana, no Largo do Machado! Ou seja: a mesma despesa que antes pagava 290 metros quadrados agora dá apenas para 50 metros! Visto isoladamente, isso significa que este poder aquisitivo encolheu quase 6 vezes!

Esse pandemônio no mercado imobiliário é culpa apenas da Copa e das Olimpíadas?Esses fatores tem seu peso, mas é claro que não são os únicos responsáveis.

O Ministério do Turismo encomendou uma vasta pesquisa nacional sobre o setor (que acaba de ser concluída, e usa basicamente dados de 2011). Mário Petrocchi, à frente da equipe de consultores, comentou na coluna do Ancelmo Gois que:

1) Os turistas gastaram no Rio de Janeiro uma montante 2,2% abaixo da grana que os fluminenses torraram em suas viagens para fora do estado.

2) No balanço comercial do turismo (o que nós gastamos fora do país versus o que os gringos gastam aqui) o Brasil amargou um déficit de US$ 18,6 bilhões em 2013. O acumulado desde 1990 está em 97,7 bilhões de dólares. (o que suscita a discussão sobre as razões disso: o brasileiro não se interessa pelo próprio país / cultura? É culpa dos custos de uma viagem pro nordeste ser às vezes mais altos do que uma ida pra Miami? É simples incompetência da nossa “indústria” do turismo?).



(O Banco Central acaba de rever sua estimativa sobre a balança comercial, que deve ter saldo de apenas US$ 8 bilhões. Por isso o resultado das contas externas (saldo de todas as trocas, incluindo comércio, serviços e transferências de recursos) foi elevada para US$ 80 bilhões. Em fevereiro apenas a remessa de lucros de empresas multinacionais para o exterior bateu recorde de US$ 1,3 bilhão.)

Mais um número a se computar quando se avalia os benefícios que mega eventos trazem para o Rio de Janeiro: apesar de todo o suporte financeiro do Estado e dos fiéis, a Arquidiocese do Rio ainda tem uma dívida de 20 milhões de reais, resultante da Jornada Mundial da Juventude. Na semana passada foi anunciada a troca de pároco na Catedral Metropolitana do Rio (aquela projetada pelo Niemeyer, perto da Lapa). Os credores tem esperança que o monsenhor Joel Amado leve adiante o plano de alugar o estacionamento para uma empresa – negócio de R$ 70 milhões, num prazo de 30 anos.

Fato é que a cidade está sendo tomada por agências bancárias, franquias de farmácias, lanchonetes do McDonalds e congêneres, e perdendo as pequenas lojas que davam uma identidade ao Rio. Há uns 10 dias a loja Guitarra de Prata, onde Pixinguinha, Nelson Gonçalves, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi e outros bambas compravam seus instrumentos, foi despejada, depois de 127 anos.


A Guitarra de Prata foi incapaz de encarar o aumento do aluguel, de 7 para 15 mil reais, como exigia seu novo senhorio, o Banco Opportunity– que comprou 18 casarões no lado ímpar da Rua da Carioca. O Bar Luiz recebeu na semana passada um mandato de citação dando 15 dias para o Zum Schlauch (a razão social que consta da sua fundação, em 1887) pagar o aluguel reajustado. É o processo de despejo prestes a se consumar.

A prefeitura não parece se importar com nada disso. A despeito de possíveis desrespeito à tranqüilidade da vizinhança e descaso com regulamentos de segurança e afins – porque sabe-se-lá, pode ser que tenha rolado – fato é que o Saloon 79 foi interditado no dia 18 (e não sei de reabriu, ou em que condições) pela prefeitura e a Casa Rosa, em Laranjeiras, foi fechada. Não era o caso de um ajustamento de conduta?!

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Elio Gaspari, em artigo publicado no dia 19 de março:

Quando a doutora Dilma assumiu a Presidência, uma ação da Petrobras valia R$ 29. Hoje ela vale R$ 12,60. Somando-se a perda de valor de mercado da Petrobras à da Eletrobras, chega-se a cerca de US$ 100 bilhões.

Isso significa que a gestão da doutora comeu um ervanário equivalente à fortuna do homem mais rico do mundo (Bill Gates, com US$ 76 bilhões), mais a do homem mais rico do Brasil (Jorge Paulo Lemann, com US$ 19,7 bilhões). Noutra conta, a perda do valor de mercado das duas empresas de energia equivale à fortuna dos dez maiores bilionários brasileiros.

Se o governo da doutora Dilma deve ser avaliado pela sua capacidade executiva, o comissariado petista contrapõe ao conceito de “destruição criadora” do capitalismo a novidade da destruição destruidora. No caso do preço dos combustíveis, de quebra, aleijou o mercado de produção de álcool.

(...) O que agrava o episódio é que tanto a Petrobras como a Eletrobras atolaram por causa de uma decisão politicamente oportunista e economicamente leviana. Tratava-se de vender energia a preços baixos para acomodar o índice do custo de vida, segurando a popularidade do governo. O truque é velho. Mesmo quando deu resultados políticos imediatos, sempre acabou em desastres para a economia.

[E vale fazer coro à todo o noticiário econômico que tem comentado as “realizações” do Regime Militar: lembrando o terrível arrocho salarial e o descontrole da inflação resultante das manobras que criaram o tal “milagre econômico”.]

O que há no governo é mais do que má gerência. É uma fé infinita na empulhação, ofendendo a inteligência alheia.”


Com a defasagem do preço do combustível a Petrobrás peder uma “Pasadena” por mês– lembrando: papo de US$ 1,18 bilhão.

Mais Elio Gaspari: “A prática é velha: reforça-se o orçamento dos hierarcas nomeando-os para conselhos de empresas. Tome-se o exemplo de Dilma Rousseff. Em 2006 tinha um salário mensal de R$ 8.362. Em 2007, ganhava R$ 8.700 mensais como conselheira da Petrobrás e de sua distribuidora. À Casa Civil ela ia todo dia; aos conselhos, uma vez a cada 2 meses. O conselho de Itaipu, jóia da coroa do comissariado, paga R$ 19 mil. Em 2012 havia 13 ministros nas bolsas conselho, e os doutores Guido Mantega e Míriam Belchior fechavam os meses com um total de R$ 41,5 mil. (...) Quando o PT estava na oposição, reclamava disso. No governo, acostumou-se.”

E investigação por investigação.... Angola é um dos países onde tanto a Petrobrás, a Odebrecht e muitas outras empresas brasileiras, inclusive bancos estatais, atuam. Vale lembrar que a filha do presidente, Isabela dos Santos, é a mulher mais rica da África, com uma poupança estimada de 4 bilhões de dólares. 

De todo modo seria bacana que os chefes de estado que virão ao Brasil seguissem aqui o exemplo que Dilma deu em Santiago do Chile: reservou 2 hotéis, talvez incapaz de escolher entre a piscina de um e a vista do outro, e acabou usando apenas um. Mas pagou por ambos, claro! Quer dizer: nós, contribuintes, pagamos.


Os trabalhadores brasileiros também estão pagando pelos novos computadores do Ministério do Trabalho. “O governo está usando dinheiro do FGTS para comprar computadores, impressoras e outros equipamentos de informática— bens que passam a fazer parte do patrimônio da União, no Ministério do Trabalho. Isso era proibido, mas, em 2007, o próprio ministério, que preside o Conselho Curador do Fundo, revogou parecer anterior, abrindo brecha para esse tipo de gasto. Diante da resistência de alguns conselheiros, os repasses só começaram em 2010. Em dezembro do ano passado, a pasta fez uma licitação para adquirir 2.700 equipamentos, no valor total de R$ 8,882 milhões, e na última quarta-feira, o Conselho Curador, sem o voto dos representantes dos empregadores, aprovou a liberação de mais R$ 12 milhões para o chamado “aperfeiçoamento tecnológico”, o que inclui a construção de salas de videoconferência.

Nos últimos três anos, foram gastos cerca de R$ 15,6 milhões com a rubrica, de acordo com dados do Conselho.

— Nós entendemos que não é função do FGTS dar presentes à União — disse o conselheiro Luigi Nese, da Confederação Nacional de Serviços (CNS), que faz parte da bancada dos empregadores e se absteve de votar a favor da medida na última reunião do Conselho Curador.”

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O Ministério da Cultura autorizou a Porto Seguros a captar R$ 16 milhões (pra ser exaro: isso mais R$ 9.39,60) através da Lei Ruanet para construção de um teatro em São Paulo (com 484 lugares). Depois de nota publicada no Ancelmo Goés a empresa anunciou que dispensou a mamata, e usará apenas recursos próprios. Nem por isso é menos revoltante que o governo tenha autorizado uma empresa do porte da Porto Seguros e deixar de pagar 16 milhões de reais em impostos, para criar algo que provavelmente será tão “inclusivo” e relevante para a cultura quanto o HSBC Arena!

Como de praxe no Brasil: o problema não é a falta de boas leis, o problema é como se aplica e a quem beneficia!

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Honestidade intelectual também faz falta à Bananalândia.



O Observatório Nacional também quis entrar na festa da Copa e armou uma exposição sobre ciência e futebol. Um dos painéis usa a bola e o campo de futebol para fazer analogia com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. Sobre seu disparate pedagógico o astrônomo Carlos Henrique Veiga declarou: “O Garrincha, com seus dribles, entendeu isso muito bem e numa fraca de tempo ampliava o espaço sem que seus marcadores percebessem. Era um mestre do espaço-tempo.”

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E como hoje se completam 50 anos passados do Golpe Militar no Brasil, termino defendendo que toda ditadura é criminosa.

De vez em quando vejo amigos de esquerda deslumbrados com regimes autoritários que usam outras tintas.

Ou fazendo contorcionismos mentais para botar regimes democráticos capitalistas no mesmo balaio de gato que os outros, argumentando que a pobreza (e a ignorância dela decorrente), que a falta de oportunidades, torna o exercício político igualmente impossível por aqui. O tipo de reducionismo irritante que me faz desejar ser teletransportado imediatamente pra longe do meu interlocutor.

O caso mais gave que já vi foi de elogios à regimes teocráticos islâmicos.

Segundo o último relatório anual da Anistia Internacional, publicado no último dia 28, pelo menos 778 condenados à morte foram executados em 2013 - contra 682 em 2012.

O Irãreconheceu a execução de 369 pessoas, e o Iraque matou 169 prisioneiros. Na Arábia Saudita foram 79 pessoas, sendo que 3 delas eram menores de idade. Um total de 617, um total de 79,30% do total de executados no mundo inteiro, apenas em 3 países.

Não há dados oficiais sobre a Síria e o Egito - este último condenou à morte, apenas na semana passada, mais de 500 pessoas. A China e a Coréia do Norte mantém seus dados referente à execuções em segredo.


Aliás, faz umas 3 semanas que os universitários norte-coreanos passaram a ser obrigados a usar o mesmo corte de cabelo que o ditador Kim Jong-un. Já faz anos que o Estado norte-coreano determina o que seus cidadãos podem fazer com o cabelo: atualmente as mulheres podem escolher entre 18 penteados diferentes, e os homens tem 10 opções.

A "civilização ocidental de base judaico-cristã"é bastante falha. Mas acho que dá pra sacar qual dos projetos tem mais respeito pelas liberdades individuais, não?

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(E para quem acha que a China ainda pode ser uma alternativa em termos de “gestão dos meios de produção”, vale citar que as cinco maiores instituições financeiras chinesas, que respondem por mais de metade do crédito oficial, reconheceram há poucos dias perdas de US$ 9,5 bilhões, volume de créditos que admitiram terem alcançado o status de “podre” (ou seja: empréstimos que já não têm esperanças de serem pagos). Um volume 127% maior do que em 2012.)

Absolutamente tudo o que tenho a dizer sobre Arte Contemporânea

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Gosto de polêmicas porque gosto de conhecer outros pontos de vista e do exercício de olhar as questões sob outra perspectiva. Na pior hipótese – quando não se chega à qualquer síntese -, o esforço pelo menos me obriga a elaborar melhor minhas teses e reforçar meus argumentos.

Sou um sujeito sem formação acadêmica, que abandonou a graduação em jornalismo, e que lê relativamente pouco, mas que é livreiro e por isso está cercado de gente erudita, amigos, conhecidos e clientes que lhe proporcionam eventuais e generosas palestras informais no seu ambiente de trabalho. (Mas, apesar do desinteresse pelo jornalismo, fui um aluno muito aplicado nos cursos mais teóricos que freqüentei durante a faculdade. “Transparência do mal”, de Jean Baudrillard, me deixou alvoroçado e cheguei a me inscrever nas aulas de Márcio Tavares do Amaral, heideggeriano que, um tanto condescendentemente, deu nota 10 para meu delirante trabalho final.)

Leio quadrinhos desde cedo e continuo devorando gibis, dos corriqueiros super-heróis à novelas gráficas sem muito enredo de artistas ousados e obscuros. Houve uma situação, no entanto, que me levou a estudar um pouco da história da Arte. Estava de passagens compradas para a Itália e, ciente de que seria um baita desperdício não ir aos museus ou ir sem alguma base para apreciar as obras, dei “uma estudada” (não tive orientação) no Renascimento. E visitei o Uffizi, dentre outros lugares, determinado a ver as obras do período com a maior atenção e reflexão que podia, chegando a ficar 40 minutos contemplando (e matutanto sobre) um único quadro (acho que do Filippino Lippi), e passando batido pela arte posterior, quando não me “fisgava” de imediato.


Tenho uma mania, não sei se saudável, de enxergar correlações entre fenômenos muito distintos; relacionar o sucesso da Anitta com as besteiras da Raquel Sherazade, um show do Wander Wildner com as missas do Padre Fred, a excessiva presença dos celulares nas praças de alimentação dos shoppings como o grau de fracasso das relações afetivas hoje em dia. Costumo atribuir à minha formação religiosa essa tendência a enxergar um todo a partir desse caleidoscópio de partes – e vejo meus amigos de formação marxista, por exemplo, fazendo o mesmo, não importa sobre o que estejam discorrendo.

Daí que me meti numa polêmica sobre Arte com meus vizinhos. Moro numa Vila mista, onde ateliês, estúdios de tatuagem, escritórios de design e galeria dividem espaço com residências, onde vivem cineastas, pintores, estilistas, professores e outros profissionais ligados à cultura.

Rolou aqui uma série de eventos, onde a atração principal foi a exposição das telas de um coletivo de artistas, e num desses sábados houve uma performance que eu não vi. Justamente porque me descreveram de antemão. No dia seguinte, jantando e bebericando com os vizinhos, questionei o Milton, que organizou a farra: “Vem cá: sério que você considera aquilo Arte? Mesmo?”, porque para mim soava como uma tremenda bobagem.

Milton me enviou por email uma descrição / análise da performance, para convencer-me da validade artística do lance. Entusiasmado com o alto nível do debate, desejoso de conhecer melhor o que pensam meus estimados vizinhos, e ansioso por mais noitadas regadas à vinho, petiscos e papo de qualidade, li atentamente e respondi trecho por trecho, recorrendo à livros e artigos, pesquisando na internet, para manter o alto padrão do debate.


Antes de apresentar a discussão, ou, pra ser mais honesto, a minha posição na discussão, me sinto na obrigação de explicar porque dei tanta importância pro tema. Até porque é preciso rebater o argumento de que a perfomance teve o mérito de “provocar” essas reflexões ou esse debate. À princípio não dou a mínima pra performance, que a mim nada diz, não tenho interesse pelo mercado da arte, pela academia ou pelo que caras atualmente reconhecidos como "artistas" estão discutindo. Mas me preocupa o destino das verbas públicas, a quem está sendo distribuído o (parco) espaço disponível para Arte nos jornais e programas de TV, quais tem sido os objetos de estudo dos doutorandos de nossas universidade e o que recebe a atenção de nossa inteligentsia, de modo geral. Porque esses são aspectos de peso naquilo que define para onde nossa sociedade caminha.

Os objetos que estamos colocando nos nossos museus são tão significativos quanto as pessoas que estamos elegendo para o Congresso Nacional. Tanto um quanto o outro indicam se estamos indo pro lugar certo ou pro lugar errado.

Importante notar, entretanto, que não foi uma discussão sobre qual arte é mais bacana, ou sobre a qualidade dessa ou daquela obra de arte, ou sobre a relevância desse ou daquele artista. A polêmica foi sobre aquilo SER OU NÃO SER algo do âmbito da Arte. Me preocupa que as pessoas não sejam capazes de reconhecer o que é Arte, assim como me preocupa que as pessoas não sejam capazes de distinguir entre o salafrário  e o político idealista e honesto, durante as eleições. E ouso dizer que a identificação do eleitor com as propostas do PSDB ou do PSOL é uma questão de menor importância comparada à alienação que elege tantos corruptos, seja ela resultado da ignorância do eleitor, do marketing que falseia a realidade ou da mídia que a omite.

Ainda fazendo um paralelo com a política. Não tenho saco pros bastidores de Brasília e nem pra fofocas palacianas (a menos que sejam crimes, que me sinto na obrigação de denunciar, nem q seja postando no facebook), e gosto de discussões mais amplas, teóricas até. Na verdade acho inevitável discutir Marx e Von Mises, por exemplo. Mas a discussão precisa ter um certo grau de compromisso com a transformação real e imediata do mundo, via militância minimamente organizada e capaz de se articular com partidos e grupos já atuantes.

Papos que se pretendem políticos, mas ficam no âmbito da etiqueta, ecoando bordões dignos de livros de auto-ajuda ("mais amor", "gentileza gera gentileza", "tudo parte duma educação de qualidade", "respeite para ser respeitado", "educar para a cidadania" etc), me soam fúteis na melhor hipótese, e moralismo recalcado na pior. (E muitas vezes esse discurso é derrotista, porque aceita a falência do Estado, se conforma com a idéia de que toda política tradicional - partidária - é corrupta e não vale a pena, e transfere a obrigação de transformação social exclusivamente para a sociedade civil.) Mais intragável que isso só quando a coisa parte pro esoterismo.... Mentalizações & vibrações positivas, mandingas astrológicas, cabalismo-a-la-Madonna, conjunções planetárias, xamanismos & outras asneiras. Me lembrei dum evento na Vila em que um guru, convidado por uma empresa aqui instalada, botou todo mundo pra "despertar a consciência celular".... (E é uma pena que grande parte do ativismo ecológico esteja impregnado por esses resquícios de esoterismo hippie.)


Falo dessa pseudo-política porque assim me soa o discurso sobre arte que fica dando voltas em torno de artistas libertários & público participativo, ao invés de partir pras obras de arte - sua complexidade formal, significado, alcance e permanência (as três últimas idéias podem ser resumidas em "relevância"). Estou me lixando pra Galeria Gentil Carioca e para o a escola do Parque Lage, mas quando as vejo avalizando pseudo-arte eu fico tão furioso como quando vejo ONGs oportunistas torrando dinheiro público em obras de resultado pífio.

Os convido então para a tal polêmica, que acabou não tratando apenas de Artes Plásticas, mas também de capitalismo, filosofia, imprensa, papel da critica e contemporaneidade em geral.

Pra começar, a descrição da performance:

“Sobre a mesa estão apoiados uma caixa de madeira, uma tesoura, um espelho. O performer entra e se senta na cadeira. Não há teatralização, seus movimentos são ágeis e decididos, têm apenas a precisão do programado. Há bem menos dramatização do que na Lição de Anatomia pintada por Rembrandt. Em vez de encenados, os gestos são cotidianos, e se a ação que vai se desenrolar em seguida tem espectadores, não possui a pretensão do espetáculo.

Da caixa de madeira, repleta de chaves de vários tipos, surgem outros objetos, lenços de papel, porta agulhas, agulhas e fios cirúrgicos que o artista Couto dispõe sobre sua mesa de trabalho. Foi assim, minutos antes, que ele se despediu do grupo de observadores que já se formava, subindo as escadas para preparar o espaço: “vou trabalhar”. 

O trabalho consistiu em amarrar as chaves às extremidades de fios cirúrgicos para, a seguir, manipulando sem luvas o porta agulhas, costurá-los à própria testa. O fio deveria ser capaz de suportar o peso da chave e manter-se atado à cabeça. Ainda que testada anteriormente, a ação é irrepetível e constitui sempre um novo risco. Exige estado de alerta e atenção cirúrgica. Nem tudo funciona na primeira tentativa, o que faz com que o artista volte a lastimar a própria pele. Produz-se a sensação de que o corpo, vulnerável, deve estar submetido ao procedimento apenas por um tempo programado que não deve ser extrapolado.

A agilidade do manuseio denuncia a intimidade do artista com ferramentas que pertencem tradicionalmente a um campo do saber à primeira vista diametralmente oposto ao da arte– a medicina e as ciências naturais.

Evitarei me alongar em detalhes que serão elucidados por argumentos mais abrangentes, mais tarde. Mas faz-se necessário rebater aqui a afirmação de que a performance não obedece à lógica do espetáculo. O organizador convocou o público para ver um artista em ação. E não é um público qualquer (não se trata de um megafone chamando a atenção dos transeuntes, no Largo do Machado, hora do almoço), mas uma turma que é habituê desse tipo de evento, á pré-disposta a tratar o ato com reverência e que já aceitou de antemão o performer como merecedor do título de artista. E nesse sentido é que se trata de um espetáculo: o público permanece passivo, do outro lado do muro invisível que existe entre palco e platéia – o que independe de haver tablado ou bilheteria.


A dissociação entre Arte e Ciência (assim colocada)é outro grande equívoco. Pelo menos até o Renascimento elas andavam juntas, e a aparente oposição entre elas tem mais a ver com a divisão moderna do trabalho do que com alguma transformação no fenômeno artístico / científico. Nem em termos de método há uma oposição real e significativa – e poderia ilustrar isso com os episódios que meu amigo Renato Lima estava me contando, sobre sua experiência na Escola de Belas Artes da UFRJ.  E pensemos nos protéticos. Meu pai é cirurgião dentista e trabalha com emergências, normalmente reconstruções faciais onde atuam também cirurgiões plásticos, e onde muita coisa é moldada, ou esculpida, levando-se em conta também o aspecto estético da “obra”.

“Apesar do sangue que escorre pela testa, e que o artista limpa com lenços de papel, a agulha só machuca se penetra mais fundo. Experiência ou experimento? Ao longo dos anos foi preciso encontrar um acordo, em diálogo íntimo com o próprio corpo, entre as camadas da derme e os limites da dor. 

Conhecer a própria dor. Diante do espelho e de costas para o público, o performer se vê projetado durante todo o curso da ação. Frente a sua própria imagem, pode-se dizer que se autorretrata? Se ele se retrata, não parece afetado pela própria imagem, em expressão impassível. Está diante do espelho por uma razão simples; precisa observar seu próprio corpo para nele intervir.”

Jogo de palavras. A posição que o artista assume, espacialmente, enquanto trabalha, não necessariamente acrescenta significado à obra. Imagino que telas de imensas proporções exigem que o artista pare regularmente e se afaste, para observar o andamento da obra, antes de retornar e continuar a pincelar. Nem posso cogitar que o uso do espelho no caso de auto-retratos seja alguma novidade.

O ballet, aliás, é uma arte antiga e onde a dor tem um papel importantíssimo. E quanto à questão da epiderme, eu passaria a bola pro Diego, tatuador que mora aqui na Vila. Além da tatuagem ser outra tradição antiga (e dolorosa), vivemos uma época de piercings e modificações corporais radicais. Uns pontos na testa tem mesmo o poder de revelar mais sobre a plasticidade do corpo do que a dança contemporânea, a desfile de estranhices em feiras de tatuagem ou mesmo do que o nosso convívio com travestis e transexuais?


“Mas o fato de que isso ocorra por uma razão objetiva, necessária para a execução da ação de costurar, não perturba a imagem refletida, como se o sentido prático não ousasse atirar pedra sobre espelho d’água calma. A imagem persiste. Para Leon Batista Alberti (Sobre a Pintura, 1435), quando Narciso percebe seu próprio corpo espelhado na água, torna-se “o verdadeiro inventor da pintura”, dando início à sua história.”

O físico norte-americano Alan Sokal pregou uma peça nos cientistas sociais com um artigo que publicou na revista Social Text, no fim dos anos 90. Ele conscientemente escreveu um monte de asneiras que soavam transgressoras, usando dados das ciências exatas, e recheou de citações a figuras célebres – o artigo tinha 350 notas de rodapé. Os editores não perceberam que se tratava de um trote. Meses depois, em 1999, ele publicou com o belga Jean Bricmont o livro “Imposturas Intectuais”, em que critica grande parte dos popstars atuais do meio acadêmico, em especial os pós-estruturalistas franceses.


Uma das críticas mais contundentes é sobre o uso de referências estranhas ao ramo do conhecimento em que figuras como Lacan ou Kristeva atuam. Sokal não pretende “desmentir” as teses desses teóricos, mas ele demonstra como volta e meia eles usam enunciados ou dados com os quais seu público tem pouca familiaridade, para se “blindarem” às críticas. Se seus leitores não conhecem o sentido pleno dos termos usados, ou o contexto onde aquele enunciado foi usado originalmente, fica mais fácil o autor “empurrar goela abaixo” do público suas idéias. Me surpreendi ao ler no texto a citação ao Leon Batista Alberti e não aos teóricos que discutem arte contemporânea. Não me parece que o autor renascentista estivesse se referindo a qualquer coisa próxima da performance que é objeto do texto. Isso soa apenas como um manobra para impressionar os leitores. Pura retórica.

(E poupei meu leitor de outros trechos, fartos em contorcionismos retóricos e palavras empoladas, mas vazios de sentido. Tem até plágio / citação de poema do Fernando Pessoa no meio.)

“É sem esforço que se origina alguma compaixão pelo corpo indefeso à ação (autorreflexiva) de seu próprio corpo, vítima e algoz, no exercício de um biopoder sobre si mesmo. Em holandês, a palavra compaixão medelijden significa sofrer com (med + lijden). Nosso ponto de vista é parecido, nos vemos refletidos com o artista na mesma superfície, que rebate tudo o que capta. Mas ao adentrá-la penetramos nossas próprias profundidades.”

Muita poeira levantada com esse “cavalo-de-pau” retórico, mas muito barulho por nada. Me faz lembrar o seguinte trecho de um discurso da Dilma, que o Elio Gaspari descreveu como “82 palavras em busca de um sentido”:

“Tem uma infraestrutura muito importante para o Brasil, que é também a infraestrutura relacionada ao fato de que nosso país precisa de um padrão de banda larga compatível com a nossa, e uma infraestrutura de banda larga, tanto backbone quanto backrollm, compatível com a necessidade, que nós teremos para entrarmos na economia do conhecimento, de termos uma infraestrutura, porque no que se refere a outra condição, que é a Educação, eu acho importantíssima a decisão do Congresso Nacional do Brasil em relação aos royalties.”


Também me faz lembrar outro episódio recente. O Observatório Nacional também quis entrar na festa da Copa (ginásticas para manter o orçamento!) e armou uma exposição sobre ciência e futebol. Um dos painéis usa a bola e o campo de futebol para fazer analogia com a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. Sobre seu besteirol disfarçado de criatividade pedagógica o astrônomo Carlos Henrique Veiga declarou: “O Garrincha, com seus dribles, entendeu isso muito bem e numa fraca de tempo ampliava o espaço sem que seus marcadores percebessem. Era um mestre do espaço-tempo.”

“Resta pensar sobre as chaves que se acumulam sobre seu rosto, como um véu. Se o papel do espelho é revelar, teria o véu a função de velar?”

Sim, é essa mesma a função do véu. Será que essa interrogação não foi um erro de digitação?

“Desistimos de qualquer leitura sobre clave simbólica, e nos entregamos às próprias memórias: o ímpeto de colecionar inutilidades, como as dezenas de chaves que nada abrem; o agudo som metálico que produzem ao chocar-se umas com as outras no rosto do artista, transformado em móbile; a lembrança que nos acomete se algum dia possuímos uma caixa que, uma vez aberta, revelou nosso retrato no espelho. E o encantamento que possamos ter tido ao observar o lento deslocamento do corpo idealizado de uma bailarina sobreposta ao nosso reflexo, interposta entre corpo real e imagem refletida.”

O texto termina com uma desistência, denunciando que o esforço estava fadado ao fracasso desde o início: seu valor reside na esperança de que, durante a performance, o público pelo menos se lembre de algo significativo, quiçá uma obra de arte que tenha visto alhures, num livro escolar ou noutra exposição.

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A rodada seguinte de contra-argumentos consistiu na recomendação de algumas leituras, por parte dos meus interlocutores. Uma delas era na verdade uma “saída pela direita” a la Leão da Montanha: ninguém, por mais boa vontade que tenha, poderia ler “O Ser e o Nada” do Jean-Paul Sartre sem interromper o diálogo por meses, no mínimo. Uma escapulida com alguma elegância, mas ainda assim uma “amarelada”.


Outro vizinho, o Caiado, que é pintor e ceramista, me emprestou um livro sobre o pintor Bandeira de Mello, apresentado por Walmir Ayala, e um número do jornal publicado pelo atelier de escultura Kislansky – a terceira edição, de agosto de 2004. Esta última traz dois artigos que li com imensa satisfação: “Desconstruir Duchamp”, de Affonso Romano de Sant´anna (o que me conduziu ao livro homônimo)  e, mais importante, “O específico da Arte não é a Criatividade”, de J. A. Van Acker.

Já a Julie, artista plástica que trabalha em vários suportes e com uma variedade de técnicas, sugeriu dois textos: o livro "Outros Critérios", de Leo Steinberg, e “La obra Maestra”, de Arthur Danto (não traduzido ainda pro português). Não tive acesso a estas obras, mas a Julie gentilmente me passou em PDF o sucinto e esclarecedor artigo “A desmaterialização da Arte”, de Lucy R. Lippard e John Chandler.

Mas de defesa mesmo do caráter artístico da performance.... Necas. O que li foram muitos comentários sobre os hábitos que hoje tornam alguém reconhecível como “artista”,e não uma discussão sobre as obras que questionei:

Milton: “Gostaria de ver a X CASA como lugar de possibilidades para fluir ideias, possibilidades, discussões de limites.”

Julie: “Se o artista em questão estuda desde os micropoderes de Foucault, espaços expandidos até as frestas ocupadas por Gordon Matta-Clark e tem uma consciência de uma urbanidade outra.” E ainda: “ele possui também a educação de arte formal, é professor de modelo vivo e desenho em instituições avalisadas”


O que o sujeito lê, diz, cita, escreve, ou os lugares que o sujeito freqüenta e as pessoas com quem convive, NADA DISSO torna alguém artista. Os comentários e as análises que o sujeito faz sobre obras de arte NÂO FAZEM DELE um artista. Críticos musicais não são músicos, tanto como comentaristas de futebol não são atletas. EXISTE APENAS A OBRA DE ARTE, e o fato dos autores dessas obras serem considerados artistas é quase um acidente na história humana. Afinal das contas, o monge que pintou certo mural num certo templo, e que nunca assinou nem nunca foi visto ou se pensou como artista, esse monge ainda assim é artista. Porque o obra instaurou-se como arte, inclusive para os fiéis daquele culto, há centenas de ano, independentemente deles terem consciência ou não disso.  

Me intriga esse fascínio sobre o pensamento, reduzido, pela maneiro como vejo a palavra sendo usada, à mais simples (e diria até pobre) atividade neurológica articulada em linguagem. A definição de Lippard & Chandler começa bem - “pensar é raciocínio” – mas deságua numa poça rasa e inútil: “ou descobrir relações fixas, correspondências e proporções entre coisas, no tempo assim como no espaço”. Os Teletubies também suscitam, muito bem até, atividade mental no seu público alvo, que são os bebês. Nem por isso é obra de arte, ou são as atividades mentais desses bebês algo digno de ser chamado pensamento. Sei que estou sendo quase grosseiro, mas é para explicar porque não sou convencido por este tipo de argumento: “Sobre a pixação na minha casa, que tanto impacta alguns, ele coloca a pixação em si justamente não como uma obra, mas como elemento provocador para um pensamento.”

Qual pensamento? O que exatamente está em questão? O que está sendo dito sobre a tal questão?

Julie flertou com a questão da obra de arte quando escreveu: “A tela com "street art" que a galera vem "pixando" lá no atelier "usina-1" e que vem se modificando diariamente está fora da rua, estetizada, num espaço privado, numa tela e todos são convidados a participar, incluindo pixadores mesmo. É pixação? Vale a ação ou a estética formal? É a atitude ou a intenção que define o que é o quê? Se for a linguagem e um pixador a fazê-lo numa tela é o quê? Se a intenção for a questão, o trabalho do Claudio, autorizado pelo dono de uma casa é pixação? Se a estética é similar a que se vê nas ruas, isso "desloca" a X Casa para a rua? A palavra que ele escolheu, prévia à assinatura tem um significado que ultrapassa a fronteira da pixação...

Mas ainda assim não posso considerar que tenha chegado a discutir arte, simplesmente porque todas essas perguntas dispensam a obra-de-arte-em-si, a coisa (tela, escultura, a pele tatuada etc) e na verdade se referem ao contexto em que trabalha o autor. São aspectos econômicos, sociológicos ou antropológicos, mas não estéticos. A literatura é o que está impresso no papel, e qualquer papo sobre onde o autor se sentou pra pensar no enredo, em que máquina ele digitou o texto, em que papel o texto foi impresso, onde a editora resolveu lançar o livro etc etc são absolutamente irrelevantes pra julgarmos o mérito literário da obra. “Ulisses”, do Joyce, continua sendo o que é, mesmo que você ache o livro no lixo.


Milton colocou a possibilidade da arte sem suporte, expediente que a contemporaneidade adora:  “indo mais além ainda, para algo mais sensorial e fluido, às vezes livre inclusive da obrigação de acontecer no tempo/espaço em que é exibida (...) O trabalho do artista pode ser um meio para algo além do objeto (...) o entendimento do que é arte vem se expandindo de algo necessariamente físico ou tangível para o pensamento do artista.”

Lucy Lippard e John Chadler descrevem muito bem e em poucas linhas o que aconteceu:“Durante os anos 60, os ANTI-INTELECTUAIS [grifo meu] e emocionais / emotivos processos de produção artística – característicos das últimas duas décadas – começaram a ceder lugar a uma arte ultraconceitual que enfatiza quase exclusivamente o processo de pensamento. À medida em que o trabalho é projetado no estúdio – mas executado por um artífice profissional -, o objeto se torna meramente produto final, e muitos artistas perdem interesse pela evolução física do trabalho de arte.”

(Antes de seguirmos, uma ponderação pra você deixar no seu desktop mental e acessar depois: a música e o cinema são áreas em que se trabalha coletivamente. Mesmo uma canção, que exige menos gente para ser criada e executada, é via de regra apresentada com os devidos créditos muito explícitos: fulano compôs, siclano arranjou, beltrano tocou. E todos são músicos. Imagine agora que apenas os compositores fossem considerados artistas, e os guitarristas e cantores fossem considerados apenas artífices – um eufemismo para artesão. Indignos de serem mencionados no anúncio do show, como os artífices são ignorados no anúncio de uma exposição. Ao invés de cartazes sobre as turnês de Marvin Gaye ou das Supremes, seriam cartazes anunciando os shows do Brian Holland, Lamont Dozier & Edward Holland. Esdrúxulo, não? Agora pense nesses artistas conceituais como donos dos meios de produção, nesta caso a GRIFE que seu nome representa, e os artífices como proletariado. Começa a fazer mais sentido, né?)


Voltando para Lippard & Chandler: “O ateliê vai novamente se tornando um local de estudo. Tal tendência parece provocar profunda desmaterialização da arte, especialmente arte como objeto, e se continuar a prevalecer, pode resultar no fato de o objeto de tornar completamente obsoleto. As artes visuais, no momento, parecem pairar numa encruzilhada que bem se poderia revelar como duas estradas para um mesmo lugar, apesar de aparentarem vir de duas fontes: arte como idéia e arte como ação.”

(Um reducionismo ainda mais grotesco do que signifique “suscitar uma reflexão” acaba na pura e simples comoção. Na idéia de arte como comoção do público e / ou promoção do ritual onde rola uma comoção. E aí a batucada que uma criança faz se torna um espetáculo artístico para os pais. E como a arte é conceitual e pode ser executa por artífices, Roberto Medina se transforma num dos maiores artistas da atualidade.).

Os defensores da arte conceitual gostam muito do palavreado cientificista. Milton elogiou o artista-de-chaves-na-testa por ele ter “um entendimento consistente da sua proposta de trabalho, e aprofundada num mestrado que está defendendo relacionado ao tema.” Para Milton “os que têm plena consciência de onde estão numa história da arte e num momento histórico, e vão clareando o que querem fazer em relação a isso, são inclusive os mais propensos a ter um papel mais significativo, seja pela inovação, seja pela proposta de resgate de determinados pensamentos”. Lippard & Chandler fala da experiência da Bauhaus como uma derivação do princípio científico da Navalha de Ockham, estabelecido pelo frade franciscano Guilherme de Ockham (ou William de Occam), que foi excomungado em 1328 por suas idéias muito pra frentex. Isso logo depois de elogiarem como “extraordinária” uma discutível tese positivista (que comentarei mais tarde) de um pintor cubista que eles mesmo admitem “de menor importância”.

Van Acker escreveu: a confusão estabelecida entre o que é Arte e o que seriam suas eventuais qualidades, tem sido a maior causa da Babel em que gradualmente foi afundado a teoria da Arte já desde o moralismo estético de um Diderot ou de um Winkelmann em fins do séc. XVIII, quando esses autores abriram fogo contra o Rococó alegando ser este estilo "por demais frívolo". De lá para cá, então, carregou-se tanto nos ditos critérios qualitativos que, em alguns casos, chega-se hoje a negar, através deles mesmos, pura e simplesmente, o princípio da Arte, em favor de qualidades que já nada têm em comum com esta — como no caso da moderna tendência crítica que pretende exigir da Arte que seja científica! De onde se segue que o artista em tal regime é levado a renegar o rito próprio de seu trabalho para adotar toda uma série grotesca de cacoetes científicos — como atirar-se em pesquisas e na realização de experimentos, ou até a apresentar relatórios, redigir projetos ou ater-se a propostas de trabalho.”

Não posso negar algo “maneiro” na arte conceitual. Porque afinal ela é uma proposta tão séria quanto radical. Então, ao aceitar que a execução do “conceito” é irrelevante para seu mérito artístico, posso afirmar que a descrição do trabalho (seja como relatório, seja como relato) pode mesmo substituí-lo. “Muito da arte conceitual é ilustração em um sentido, na forma de desenhos ou modelos para projetos quase impossíveis que provavelmente não serão jamais realizados, ou que, em muitos casos, não precisam de desenvolvimento além”, Lippard & Chadler.

A “artista” Elaine Sturtevant “realizou” o balé dadaísta Cancelamento (de Erik Satie). E sabe no que esse balé consiste? Em chegar lá no teatro (em Nova Iorque, no caso) e dar de cara com o aviso de cancelamento do evento. Alguém vê necessidade de se pegar um avião, trem ou metrô para apreender o significado dessa “obra”? Então ao invés perambular pelo mundo, percorrendo galerias e museus, basta ler a descrição dos trabalhos de 23 artistas conceituais descritos nas páginas 156 e 157 do livro onde está o ensaio de Lippard & Chadler para avaliá-los! (Talvez ter um livro da Taschen para ilustrar ajude, ou basta jogar no Googe-image.) Essa turma topou, conscientemente, ser julgada “de orelhada”. Mas aviso logo: os conceitos são via de regra muuuuito simplórios, a leitura dessas duas páginas é bastante enfadonha. (E se tem um conceito que considero importantíssimo na crítica da arte é o de chatice.)


Lippard & Chadler: “Algumas das mais racionais concepções da arte são visualmente sem sentido. A extensão pela qual a racionalidade é tomada pode ser tão obsessiva e tão pessoal que esta racionalidade é finalmente subvertida, a e a arte mais conceitual pode assumir uma aura de enorme irracionalidade.” (Note o uso leviano do termo racionalidade, análogo à maneira vulgar como anteriormente se referiram ao pensamento. Mas o verdadeiro problema aqui é a menção à “subversão da racionalidade”. Uma coisa é afirmar que algo parece ser irracional, mas não é. Outra coisa bem diferente é afirmar que subverte a racionalidade.) “Hanne Darboven faz folhas de desehos seriais em papel gráfico – infinitas permutações com base em complexas combinações numéricas; (...) Suas decisões quanto ao que seguir e ao que abandonar são estéticas. (....) Com frequência não há nem  mesmo um padrão perceptível.”

Não discuto as vanguarda do início do séc. XX no presente contexto porque não reconheço uma legítima continuidade entre o que foi feito pelos dadaísta e o que foi feito a partir dos anos 60. Tanto pelos objetivos dos artistas serem completamente diferentes, como pelo significado radicalmente diverso que existe entre o significado do gesto inaugural e a sua repetição reconhecível, ou seja, a sua posterior citação. “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, bem colocou Karl Marx. A quem eventualmente tenha realmente se sentido atraído pelo balé Cancelamento de Erik Satie / Elaine Sturtevant recomendo que procure por Joey Skaggs. Me parece que, se ele é eventualmente referido como artista, não foi por esforço próprio: Skaggs parece dar pouca ou nenhuma bola pro título. Os alvos de suas peças são muito mais interessantes do que socialites que gostam de happenings: a CNN, por exemplo, chegou a espalhar cartazes com suas fotos para evitar que seus jornalistas fossem vítimas dos trotes de Skaggs. Até Pedro Bial já foi enganado. Sua história tem a ver com o autêntico projeto da Vanguarda. Um projeto essencialmente político, ainda que também estético, como Stewart Home prova no seu ótimo “Assalto à Cultura”. Mais sobre o livro que saiu no Brasil pela Conrad aqui: http://aptovazio.blogspot.com.br/2013/05/a-morte-do-dj-acaro-fe-num-possivel.html


Então os defensores da arte conceitual protestarão, talvez insistindo que a Arte não tem o compromisso de entreter, já que ela se define pelo conhecimento que busca ou traz à tona (engraçado como essa rapaziada é capaz se alternar entre o repúdio e a adesão à Ciência, conforme arbitrária conveniência). Então é artista o sujeito que  Pode-se argumentar que o pesquisador pratica colabora para a medicina, mesmo trancado no laboratório, usando modelos artificiais para elaborar suas hipóteses, ou mesmo usando o conhecimento previamente acumulado para criar teorias totalmente hipotéticas. Mas isso não faz dele médico, porque a medicina exige algum grau de contato com o paciente. Talvez ele seja um químico ou um biólogo. Ou até um engenheiro, desenvolvendo uma prótese.

Vamos novamente sair das artes visuais e adentrar a música. Uma infinidade de artistas nesse campo que tiveram qualquer formação acadêmica. Gênios que não precisaram sequer aprender a ler uma partitura. Meu amigo mais talentoso na música é um cara que nunca teve uma aula sequer. Já compunha e se apresentava tocando guitarra numa banda de rock,m aos 12 anos, e durante o único período em que foi obrigado a se sustentar com a música foi tocar piano em hotéis de Ubatuba. Anos mais tarde tornou-se advogado. Continua compondo e tocando apenas por diletantismo. (Se chama Sérgio Murilo, foi meu colega de escola na infância.)


Não é fácil se orientar nesse debate sobre arte contemporânea.É tão difícil para a razão orientar-se no meio dessa estrondosa sinfonia cacofônica de idéias quanto imagino que seja difícil acostumar os sentidos ao esplendor kitsch das luzes, sons e biritas de Las Vegas durante o Carnaval.

É preciso exterminar todas as miragens que nos desviam de nossa rota e direção à Arte. O pintor e escultor José Antônio Van Acker retira grande parte do entulho em seu brilhante artigo “Do específico da Arte”:

O específico da Arte não é a criatividade.

A criatividade exerce-se em qualquer ramo de atividade — na filosofia, na ciência, no comércio, na indústria, na política e até no crime, até na guerra — enfim, em tudo podemos aplicar nossa criatividade. Segue-se que o ato não é intrínseco ao ato artístico, assim como o ato artístico não é intrinsecamente um ato criador. Também não é a expressão o específico da Arte.

Continuamente nos estamos expressando no comum de nossa vida cotidiana — seja um gesto ou uma palavra, nossas reações, nossas preferências, seja um rito de dor, seja um riso de alegria — tudo isto se expressa sem que se faça Arte. Tão pouco a beleza é o específico da Arte.

Para a maioria das criaturas a estética está tão intimamente ligada à idéia de Arte que lhes parece impossível existir a Arte sem beleza. De certo modo é verdade — e teremos de ver adiante o porquê — mas, seja como for, o fato é que existe a beleza sem a Arte. Não é portanto a beleza o específico da Arte. Fora desta, ela também existe, e em alto grau, como na natureza, por exemplo. Qual o artista sincero que já não tenha suspeitado de si para si que seu trabalho nem chega aos pés do mais trivial e insignificante "trabalhinho" da natureza? Além disso, deixando-se de lado essa natureza do mundo a nossa volta, todos os setores, que poderíamos chamar de mentais, ou espirituais, possuem sua estética — como a religião, por exemplo, ou até a matemática. Ao simples resolver de um teorema podemos ser surpreendidos por uma repentina invasão da emoção estética. A estética é absolutamente imprevisível: não é preciso baixar às aberrações do gosto perverso, basta citar o caso clássico do médico que consegue achar "belíssimo" um tumor. Sim, a estética é realmente imprevisível. Mas o fato é que nem esse tumor, nem a religião de um santo, nem a lindeza de um teorema são Arte — como também não pode ser considerada Arte toda a magnificência da natureza.

Mas, ao lado da estética, há uma outra idéia que também, na mente de muitos, se funde à idéia de Arte — e chegamos assim à questão da maestria. Também esta não é o específico da Arte.

Trata-se de uma idéia antiga, mas que perdura até hoje no geral das mentalidades — a Maestria! — Arte seria aquilo que é feito a primor, com invenção, com capacidade, com perfeição — não importa o que — qualquer coisa; desde mesas e cadeiras até pontes de estrada de ferro, toda espécie de artefatos, toda obra bem planejada, bem executada, bem concluída, enfim, a coisa feita magistralmente, inclusive as chamadas "Belas Artes", que seriam então a maestria aplicada à obtenção da beleza. Mas ao lado das "Belas Artes", havendo sempre espaço para a concepção da Arte como sendo um conjunto de artes — mesmo no caso de coisas simplesmente bem urdidas: a arte de enganar, a arte de persuadir, a arte de ganhar dinheiro, e assim por diante, a arte disso, a arte daquilo, a arte daquiloutro.”


O nó mais difícil de desatar é aquele entre obra de arte e artista. Mas Van Acker deve ter sido escoteiro ou marujo: “A teoria que concebe a Arte segundo as qualidades do ARTÍFICE (a Arte como ato de maestria) é uma teoria qualitativa da Arte. Maestria não é "Algo", é qualidade de "Algo". Teríamos então que o específico da Arte residiria no "como" e não no "o que". Nesse caso, porém, tanto poderíamos dizer que está naquilo realizado com paixão, ou com furor, ou com denodo, ou com audácia (como aliás também se diz). Seria assim uma outra qualidade: a expressão — entrando para o lugar da maestria como indicatriz da natureza específica da Arte. Mas no lugar da expressão, por sua vez, poderíamos ter ainda uma terceira qualidade (um terceiro "como"): a criatividade — e, no lugar da criatividade; a beleza — e assim ao infinito... Não. O específico da Arte tem de ser outra coisa. Tem de ser algo só dela.

Durante muito tempo, de fato cogitamos se a Arte não seria mesmo esse fenômeno antes adjetivo que substantivo. (...) Esta é, aliás, no geral, a atitude da crítica. Debruça-se esta sobre o VALOR, ali se concentra, ali queima pestanas chegando, neste afã, por vezes, a atribuir principalmente a valores um tanto extravagantes apenas paralelos à Arte, como por exemplo a tendência contemporânea de emprestar uma importância exagerada ao valor histórico de uma obra de arte.

Mas a crítica é assim mesmo. Valorar é legitimamente sua função, é de sua natureza discutir, descobrir, explicar, comentar, analisar qualidades. Porém, seria apenas enquanto se limitasse a comentadora dessas qualidades — como dizendo: "Tal obra é boa Arte por tais e tais qualidades; boa por criativa; boa por expressiva; boa por bela; boa por magistral, etc...". Mas se a crítica, extrapolando suas considerações, feitas apenas a nível qualitativo, tenta aplicar esses mesmos critérios qualitativos ao exame do próprio ser do fenômeno artístico, arrisca-se então a enredar-se em sérios problemas de interpretação. Se a crítica julga não artística uma obra por não bela, não magistral, não criativa, não expressiva, etc... ou não histórica — então está tacitamente afirmando serem essas tantas qualidades o próprio ser da Arte.”

 “Como professores de Arte, por exemplo, têm-nos vindo às mãos estudantes completamente paralisados e esterilizados pelo que chamaríamos de "síndrome de criatividade". Não produzem, não desfrutam mais, estiolados que estão em seu sagrado horror ao "Déjà fait". Para eles a Arte tornou-se Inovação por excelência; o passado está fechado e cimentado e a Arte do presente monta-se sobre uma constante ruptura com o que foi. Segue-se que a Arte é História. A História e sua suposta constante mutação; no que o Artista é transformado em um ansioso caçador de lances inéditos, sempre fiscalizado pelo historiador que lhe irá marcando os pontos para o vestibular da imortalidade.

Essa situação, como é fácil imaginar, tende a ser neurotizante. Isto porque a Criatividade, que é um valor extrínseco da Arte, foi tomada como natureza intrínseca, resultando daí um embaçamento da consciência; o mesmo se dando com a expressividade quando é também tomada como intrínseca e não extrínseca ao fenômeno artístico.Nesse caso observa-se um fenômeno curioso, muito comum há algum tempo atrás, que era, não se ficar paralisado, como na "síndrome de criatividade", mas ficar-se embotado, não se podendo reagir a não ser sob violentos impactos que nos abalassem os alicerces, sendo assim a Arte transformada numa espécie de raio fulminante cujo fim precípuo seria o de desacomodar.


No trecho final de um de seus emails, meu vizinho Milton escreveu: “O fato é que ninguém conseguiu dizer até hoje o que é exatamente arte.”

Acho que não. Se considerarmos os pensadores gregos como ponto de partida, podemos dizer que se soube muito bem o que a Arte é, durante esses 2.500 anos. Assim relativizada, a confusão que impera após o modernismo ganha sua verdadeira (e pequena) dimensão. Pode-se argumentar que existiram várias concepções do que seja arte, umas mais complementares ou conciliáveis e outras mais dissonantes entre si. Se várias delas não podem dar conta do que hoje o mercado (e/ ou a academia) considera arte, talvez isso deponha mais contra o mercado atual da arte (e/ ou a academia) do que contra esses filósofos.

Van Acker: “No caso da Arte, a conhecida ignorância, incompreensão, o desinteresse a seu respeito reinantes hoje na sociedade são devidos, em grande parte, à indefinição. Idéias irrefletidas e opiniáticas que, gerais e esparsas, circulam ao sabor das modas e dos caprichos, bombardeiam de todos os lados o neófito, confundindo-o e levando-o a um penoso estado de perplexidade.” E ainda: “A Arte tornou-se o elemento recessivo de nossa época, uma terra de ninguém, assim como na Idade Média o elemento recessivo e a terra de ninguém eram Ciência. Ao obscurantismo científico da Idade Média corresponde o obscurantismo artístico da Idade contemporânea.(Aquela tabelinha positivista realmente foi um tiro no pé, hein?)

(Uma divertida coincidência em Lippard & Chandler: “De fato, o meio performance vem se tornando uma terra de ninguém (o de todos) no qual artistas visuais cujos estilos, ainda que completamente discrepantes, se podem encontrar e até concordar”.)


Chego então em Martin Heidegger. Terei de traduzir com minhas próprias palavras o que o filósofo alemão define como obra de arte em “A Origem da Obra de Arte”. Me perdoem pela “tosquice”, mas meu exemplar do livro está na casa de meus pais, mesmo que o tivesse á mão, duvido que tivesse disposição para destrinchá-lo novamente. (E ele é um autor hermético, seria impossível citar poucos trechos suficientemente elucidativos.) Talvez pareça excessivamente simplório da maneira como apresentarei a tese: a culpa é minha e não do Heidegger, não se enganem!

Heidegger primeiramente defende a concretude da obra de arte, e limita o fenômeno dentro das propriedades da coisa (esse é exatamente o termo) que estamos olhando (ou escutando, porque o raciocínio se aplica à música). Não se trata de uma abordagem “psicológica” do estar-diante-da-obra-de-arte, e não vale para uma divagação feita a partir de uma descrição que alguém faça dum quadro ou duma performance. No livro (que é a transcrição de uma conferência) ele elabora seu pensamento a partir de um quadro do Van Gogh. Vale a pena ler. (Inclusive ele discute a racionalidade, no esforço de libertar o conceito dos princípios lógicos e dedutivos, por exemplo.)

Pois bem: ele diz que a Arte é uma investigação, no mesmo sentido que a Ciência é. Só que a ciência não consegue dizer o que uma coisa É. A ciência apenas divide uma coisa em outras coisas que a compõe, e descreve as relações que as partes tem entre si. Ou cria categorias de organização para as coisas, as classifica. Não se trata de uma apreensão significativa das coisas, mas funcional e sistemática. É quantitativa, mas não qualitativa.  A ciência estabelece que o homem faz parte do grupo dos mamíferos, e nomeia os órgãos que o compõe, as substâncias que constitui esses órgãos, e descreve a sistemática entre essas coisas todas. A sociologia e a antropologia sistematizam e organizam os homens e grupos de homens do mesmo modo que a química, a física e a biologia o fazem com substâncias, átomos e órgãos. 


E aí temos a morte. A ciência vai descrever o fenômeno morte, explicando que algumas coisas param, outras coisas mudam de lugar, coisas acontecem, coisas deixam de acontecer. O coração continua batendo, mas não há mais pulsos elétricos no cérebro: deu-se a morte. Mas a morte não É isso. Do mesmo modo que um divórcio não é um ato jurídico. Apenas a Arte pode dizer o que a morte É ou o que o divórcio É. Para sabermos o que é a morte temos que recorrer aos poemas da Emily Dickinson. O que me ajudou a saber o que é o divórcio foi a leitura dos romances “Bolor” (Augusto Abelaira) ou o “Amor é fodido” (Miguel Esteves Cardoso).

Aí reside a força da Arte: no poder da imaginação e na ambição de conhecer o mundo, ATRAVÉS DA imagem, da palavra, dos sons ou do barro (alô Caiado, nosso ceramista!). Às ferramentas que o autor usa para dar forma à obra de arte está o que chamamos técnica, e o autor tem um duplo desafio: conhecer o mundo pela imaginação e dar forma ao que descobriu. Mas a VERDADE, que é o objetivo final desse esforço, está na obra, e em mais nenhum lugar. Porque ela é uma revelação, mas não uma epifania mística, transcendental: “Nada temos contra as sensações assim diretamente provocadas pela natureza. Ao contrário. Achamos que as maravilhosas formas de nossa modelo são tão adoráveis nela em carne e osso quanto no mármore da estátua, ou até ainda mais apreciáveis. A Arte não é um refúgio para nosso escapismo ou para que nos elevemos acima da realidade. A Arte não está acima. Ela é simplesmente um recurso de que dispomos para que através de uma estratégica eliminação da contingência do real, possamos mais livremente penetrar o âmago desse mesmo real.” (Van Acker) Uma revelação “imanente”, digamos assim, e não uma legenda debaixo do quadro ou no saguão de entrada da galeria.


Curiosamente esse concepção heideggeriana de Arte se encaixa bem no esquema de Joseph Schillinger usado por Lippard & Chandler, mas provavelmente não na posição que os defensores da arte conceitual supõem. No livro “Os princípios matemáticos das artes” (que Lippard & Chandler julgam extraordinário), o pintor cubista (de menor importância, segundo a dupla) norte-americano “dividiu a evolução histórica da arte em cinco zonas, que se substituem em crescente aceleração”. É uma divisão linear em ordem de refinamento estético, correspondente a um desenvolvimento também linear e positivista das sociedades . A segunda etapa é o da arte mística / religiosa, a terceira etapa é a arte que expressa emoções e na quarta etapa a arte se torna racionalista, marcada pelo empirismo – e nesta última fase Schillinger inclui forma literária do romance. Estaria Heidegger preso a este momento da “evolução humana”? Elaborando uma teoria que se aplica apenas à Arte realizada em seu momento histórico? Ou que dá conta no máximo daquilo que foi realizado até então? Vejamos como seria a derradeira etapa seguinte: “científica, pós-estética, a qual possibilitará manufatura, distribuição e consumo de um perfeito produto artístico, e a que será caracterizada pela fusão de formas artísticas e materiais e, finalmente, uma desintegração da arte, a abstração e a liberação da idéia”. No meu entendimento Heidegger já incluiu isso que se insinua no termo “idéia”, mas ali está enevoado, disforme, quando descreve a ser-essencial revelado pela obra de arte. (Os acadêmicos conhecem as convenções relacionadas ao vocabulário heideggeriano, que inclui estratégicos usos de letras maiúsculas para diferenciar alguns de seus conceitos – ser e Ser, por exemplo. Eu não sou acadêmico. Então por favor faça um esforço para captar o sentido do que escrevo, assim como faço um esforço para dar clareza ao que escrevo. Haverão pequenas falhas, minhas e suas, mas tenho fé que podemos nos entender, ok?)

E já que Lippard & Chandler cavaram a própria cova.... Vamos citá-los a fim de situar a arte conceitual dentro do esquema de J. Schillinger. No espaço de 2 parágrafos (páginas 163 e 164), a dupla primeiro advoga que julgar o mérito dos conceitos propostos pelos artistas conceituais não é importante, para depois dispensá-los até mesmo da obrigação de serem esforçados no que poderia haver de manual no ofício artístico: “o mesmo pode ser aplicado ao estilo no sentido formal, e estilo, exceto como marca pessoal, tende a desaparecer no caminho da novidade”. (Ou seja: reconheceremos os artistas por sua incompetência, mais do que por suas virtudes.) Afinal, “se o objeto se torna obsoleto, a distância objetiva se torna obsoleta”. Novamente rechaçando o próprio julgamento qualitativo do conceito. Ops! Peraí! Juiz: cartão vermelho aqui, por favor. Outro truque sujo retórico. Uma repentina e instigante profecia acerca de uma transformação radical tornando o discurso mais sedutor. Mas isso não o torna mais verdadeiro. Essa última frase citada exigiria um ensaio inteiro que a defendesse. Da maneira como está, não passa de um axioma proposta com a mesma arbitrariedade com que Moisés propôs os 10 mandamentos – ou o Aiatolá Khomeini anunciava suas fatwas. “Cerca de 30 anos atrás, Ortega escreveu sobre a nova arte: a tarefa que ela designa é enorme; ela quer criar a partir do nada. (...) Plenamente consciente da dificuldade da nova arte, ele provavelmente não se surpreenderia em descobrir que uma geração ou mais depois o artista alcançou mais com menos, continuando a fazer algo do “nada” 50 anos após “Branco sobre Branco” de Malevich, que parece ter definido o nada de uma vez por todas. Ainda não sabemos quão pouco “nada” pode ser.” [... putzgrila... como diria minha vó] “Chegou-se a um derradeiro ponto zero, de pinturas pretas, pinturas brancas, feixes de luz, filme transparente, concertos silenciosos, esculturas invisíveis (....) Isso dificilmente parece provável.” O ensaio se encerra esperançoso. Affonso Romano de Sant´Anna: “É aqui que a arte contemporânea se confunde com misticismo e religião. Um diálogo com o ausente, mediado pelo artista (crítico e curadoria) como sacerdote de um credo, Na religião há de ter fé. Em relação às obras contemporâneas, há que acreditar nas intenções do artista. Quanto mais vazia a obra, mais cheia de significados a preencher.” O Ou seja: os contemporâneos teriam descido para o segundo degrau da escadinha do Schillinger.
“A irrealidade, na Arte, não é mentira, é um dispositivo, um dispositivo inerente ao próprio ser da Arte, e graças ao qual nos vemos libertados da contingência dos fatos sem que com isso percamos a sua essência. A essência dos fatos (ou Verdade) sem a contingência (ou Realidade) — a Arte é verdade liberta de realidade.Chutaria que Van Acker era heideggeriano.

Mas ele apresenta o ser-essencial usando outros termos, resultando uma formulação mais “amigável”, pela facilidade com que podemos aplicá-la no entendimento daquilo que indubitavelmente reconhecemos como obra de arte, em todos os seus aspectos qualitativos. O Próprio e Único da Arte, aquilo que lhe é específico, aquilo que, digamos, confunde-se com ela é, ao nosso ver a FICÇÃO. A FICÇÃO não existe fora da arte. Não existe nas "outras coisas". As "outras coisas" ou são, ou não são. A Arte (a ficção) é sem ser e, sem ser, é. (...) Não se trata de fantasia. A fantasia é um fenômeno diverso, como que o inverso da ficção. Embora a fantasia se dê unicamente no campo mental, está profundamente comprometida com a realidade, por um lado, e, por outro, é arbitrária, ou seja: não está comprometida com a verdade.”
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Em meio ao fogo cruzado de opiniões, houve quem tentasse nocautear detratores & defensores da arte contemporânea de uma só vez, afirmando ser o Tempo o definitivo Juiz. A ele cabe bater o martelo sobre a significância e o alcance / universalidade das obras de arte.
Acho que o significado e o alcance, o poder, digamos assim, da obra, tem relação direta com a tal Verdade que ela revela, na concepção de Heidegger.

O que me faz lembrar um pequenino ensaio de Jorge Luis Borges sobre o "Dom Quixote", seu romance predileto. Borges comenta sobre os defeitos de Cervantes como escritor. Sobre a inconstância e excessos de seu estilo. (Dei uma olhada aqui no sebo, mas não tenho o livro no momento...) Isso como preâmbulo, antes de comentar outro aspecto da obra, que é a sabedoria de vida nela contida. Resumidamente, Borges diz que aprendeu muito sobre a vida ao ler Dom Quixote. (Aliás, foi um comentário parecido que me instigou a ler o Marcel Proust - o que ainda não fiz. Meu ex-patrão, o Marcelo, livreiro que me ensinou quase tudo o que sei sobre meu ofício, certa vez disse que ninguém havia lhe ensinado tanto sobre apaixonar-se quanto o Proust. Ele também elogiou o "O Vermelho e o Negro", do Stendhal, por ser o melhor romance já escrito sobre alpinismo social - se referindo, se não me engano, à segunda parte do livro.) O que Borges defende, no tal ensaio, é que o conhecimento do mundo contido na obra de arte É TÃO IMPORTANTE para dar-lhe MÉRITO ARTÍSTICO quanto seu aspecto formal (técnico).
Essa reflexão pode ser útil para resolvermos outras questões, como a da utilidade ou a da beleza.
Porque notem que Borges não elogia a "mensagem" do Dom Quixote. Na verdade "mensagem"é um termo que tem uma conotação utilitarista, de fazer bem ao leitor, ou promover o bem.
Não é nada disso. 
Borges está falando sobre a Verdade no sentido de compreensão do mundo. E o mundo também é feio, desagradável, violento, caótico, injusto, arbitrário e desesperador, entre outras coisas...

Ou como Walmir Ayala escreve no ensaio que abre o livro da Mini Gallery Edições de Arte sobre o Bandeira de Mello:

“[Bandeira de Mello] confessa, por outro lado, sua indisposição para com as posições de vanguarda, certamente pelo caráter classicista de sua formação, e o compromisso com um plano da beleza em termos da imagem incorruptível. Nem era o caso de criar fronteiras entre o que convencionamos chamar de belo e feio, já que em muitos momentos de sua obra tocada de monumentalidade, Bandeira de Mello traduziu a angústia, a miséria, a desolação, a pobreza e o êxodo. Estaríamos diante de uma circunstância feia, até de desagradável convivência, e que o artista apoiado em recursos físicos de pintura, ou de desenho, transformaria em cenas envolventes e didáticas, no mais puro sentido. Vale a pena transcrever o testemunho de Herbert Read sobre este tema: 

“por definição, todas as obras de arte, sejam literárias, plásticas ou musicais, devem encerrar princípio estético e bem pode ser que este fator de distância esteja sempre presente numa obra de arte, em maior ou menor grau. Mas a distinção que desejo estabelecer é entre as obras de arte que pinta objetos feios quase que, poderíamos dizer, com amor,aceitando-os em sua realidade medonha e elevando-os a um plano de aceitação; e as obras de arte que são uma deformação da realidade, uma caricatura grotesca, perversa, difamatória sob todos os aspectos, e que aceitamos, quando as aceitamos, com aflições, correções, punições, protestos. Nestes casos a deformação na está no objeto em si, mas na visão que dele tem o artista.” 



Em Lydio Bandeira de Mello temos sempre a primeira alternativa: ele pintaria qualquer objeto mesmo feio sempre com amor. Esta bandeira conceitual não deve ser prejudicial a uma visão abrangente da natureza humana, mesmo quando adotamos os critérios heraclitianos do vanguardismo, do ciclo de abate e restauração, em termos de uma história da civilização cada vez mais fragmentada em seu enfoque planetário.” Bandeira de Mello  nasceu em 1929 e até hoje é professor de Modelo Vivo da Escola de Belas Artes da UFRJ. Segue ainda hoje dando aulas de desenho e da pintura para turmas particulares em seu ateliê, em Laranjeiras. Pode-se afirmar que Bandeira de Mello careceu de justiça, tendo em vista a importância de seu trabalho. Lutou contra ele o anjo poderoso da espada novidadeira, que não permite a passagem dos independentes. O contrário é o que se está vendo, nas mais espertas e bem municiadas gerações dos últimos dias. Recentemente tomei conhecimento do currículo de um jovem adepto da chamada geração 80, que começou a pintar em 1982, em 1983 recebeu um prêmio importante no Salão Nacional de Artes Plásticas e em 1984 ocupava o espaço de uma das melhores galerias do Rio de Janeiro. Um caso mozarteano, sem dúvida. Ou um blefe dourado.” 

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Cai bem esse visita ao Borges, um ficcionista com especial interesse pelo que se convencionou chamar realismo-fantástico, uma expressão que conjuga dois termos problematizados por Van Acker em seu artigo.“Outro aspecto que também faz parte da ficção é o realismo. Ao contrário do que tantos temem, o realismo não faz como que a obra escape da ficção e caia no real. Seria de fato absurdo dizer-se que a realidade é realista. Só o não real pode ser realista.”


Nosso vizinho hors concours em termos de simpatia é o Kiko, biólogo por formação, comerciante de artigos alimentícios finos por ganha-pão, mestre-cuca por vocação. Ele contribuiu para o debate com uma piada que reproduzirei desprovida do efeito cômico (porque estou mais do que exausto à essa altura): um sujeito chega no boteco e conta um causo super rocambolesco e interessante. Chega outro e diz que não é nada daquilo. Então o primeiro pergunta pra platéia: “vocês preferem a verdade chata dele ou posso voltar pra minha mentira divertida?”

“Temos então que Verdade não é qualidade mas atributo do próprio ser da Arte, assim como "mentira" ou irrealidade não é defeito mas também atributo. A Ficção pressupõe o Vero e o Irreal ao mesmo tempo. Podemos observar: a Arte esvai-se, desaparece, assim que resvale da verdade ou que toque o real. (...) Para dar uma idéia mais concreta do que acabamos de expor, tomemos o exemplo de um ator que está representando aí no palco o papel de um ébrio. Ora, para que a Arte subitamente desapareça, ou nem chega a existir ali, bastam dois casos: 1) se o ator não lograr a nota essencial que caracteriza a embriaguês e — 2) se ele estiver realmente bêbado.

(...) A natureza é superior à Arte. A natureza é total, sintética, dinâmica; a Arte parcial, analítica, estática. Seletiva por excelência. A Arte penetra e fixa um aspecto da verdade segundo um ponto de vista — ao passo que a natureza, indiscriminada, é aberta, abrangente, contém e processa ao mesmo tempo todos os pontos de vista. Daí a grande utilidade da Arte. Caracteristicamente limitados, precisamos da Arte para que através de uma supressão da realidade totalizada da natureza, possamos entendê-la e senti-la do nosso ponto de vista, sem contudo faltar-lhe à verdade. A arte toma do todo uma parte e dá a essa parte, graças a um truque (a ficção), uma conotação de todo.

Temos então um segmento da verdade que vive sua totalidade própria, fechada e separada da totalidade aberta do real. Não há obra de arte aberta. A concepção de "obra de arte aberta"é justamente uma dessas falácias de uma época de apogeu científico e de obscurantismo artístico, e que portanto reluta por todos os meios em aceitar a natureza ficcional característica da Arte como fenômeno.

A arte é um fenômeno reflexo. Daí talvez tê-la Aristóteles chamado de "imitação". (...) mas isto mais porque geralmente se confunde a imitação com a reprodução. (...) Um macaco que ponha a imitar pessoas no zoológico, pessoas que ali estão a observá-lo, imediatamente provocará nesses circunstantes uma mudança de interesse. Surgirá ali uma platéia. Ver-se-á o macaco de repente, como outros olhos, ver-se-á nele o homem refletido — não como uma réplica mas como algo que surge em outra coisa, algo subitamente transportado para o mundo livre e hipotético da irrealidade. O que interessa doravante nesse macaco não é nem o macaco-homem nem muito menos o homem-macaco, é o macaco-ator, esse que, embora em nível animal e rudimentar, e sem ser homem, de repente, consegue agir momentaneamente como se o fosse — assim como aquele ator, que em outro nível, sem estar bêbado, age momentaneamente como se o estivesse, ou como o mármore da estátua que, sem ser carne, fascina ficticiamente como se carne fosse.

É o fascínio do ser-reflexo que nos atrai de maneira particular. Atrai e envolve. Já na natureza bruta esse ser se insinua. Qualquer reflexo dá de si um chamamento situado alhures perto da emoção artística. É o sol refletido nas folhas de uma árvore, por exemplo, (para não falar de um vitral) que nos atrai bem mais que o próprio sol, cuja ígnea realidade, aliás, nem pode ser encarada diretamente.”


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No fim do artigo, como se cientes de que esclarecer não é o mesmo que convencer, Lucy Lippard e John Chandler fazem um último e desesperado apelo para que gostemos da arte conceitual; “O julgamento das idéias é muito menos interessante do que seguir as idéias estritamente”. Como se faz esse salto: do entendimento da idéia como arte (a formulação “arte como idéia” me soa obscena) para a abdicação do julgamento de valor da idéia? Affonso Romano de Sant´Anna escreveu: “um dos equívocos da arte conceitual é achar que todo conceito se equivale em qualidade”.

Sem o deleite sensorial oferecido pela arte tradicional (e a busca dos prazeres carnais dispensa justificativa), e admitindo-se a mediocridade de muitos dos artistas conceituais, por que alguém gastaria seu tempo chafurdando nessas pretensas idéias contemporâneas? Pela grana e pelo status. Que se pode conseguir comprando arte contemporânea ou sendo um artista dessa contemporaneidade. “Não se trata do já estudado fenômeno da perda da aura artística, mas sim de algo que se poderia denominar reinvenção de uma outra aura, resultante tão somente do marketing e do mercado de galerias, de museus, de bienais e exposições congêneres. Uma aura instituída por uma espécie de seita que faz da recusa de um pacto com o público a sua autopropulsão. A improvisação, a audácia, o arrivismo, a exploração da ingenuidade do público e a esperteza burguesa e mercantilista sustentam um insólito equívoco na história das manifestações simbólicas do homem.” Affonso Romano de Sant´Anna, em “Equívoco alarmante” – in “Desconstruir Duchamp”.

Milton escreveu: “Numa conversa com o Tobinaga (Claudio, da casa da Julie), que fez a pixação lá em casa e incluo na conversa, gostei muito o ponto que ele colocou: aprovar / permitir o que é certo ou errado em arte é uma atitude de ditadura!“

Nada disso: a liberdade advém justamente do questionamento, porque quando se foge do debate (e considera-se tudo mera “opinião”, algo de ordem íntima) o que se obtém não é a profusão de técnicas, hibridismos e temáticas, mas, pelo contrário, empurra-se a arte para as mãos do mercado. A verdadeira ditadura é essa aí, a do mercado: onde o diploma, o currículo e os padrinhos determinam o que vale ou não. Vender é certo, encalhar e errado.

Todos os exemplos que dei a respeito do mercado da arte, nas conversas que tive com meus vizinhos,  constituem, no conjunto, um esforço para convencê-los a IGNORAR o eventual aval que marchands, galeristas e jornalistas tenham dado pros artistas, e CONVIDÁ-LOS A JULGAR O MÉRITO ARTÍSTICO DAS OBRAS, a partir da própria sensibilidade estética – que costuma estar embasada, é claro, também (mas não só) na bagagem de leitura que cada um traz.

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Uma última atenção à arte conceitual. Lippard & Chandler comentam que no contexto da arte conceitual “foi considerada a possibilidade de desintegração da própria crítica de arte, já que a arte conceitual seria uma arte sobre a crítica, em vez de arte como arte”. Penso que a dupla acertou na trave, mas que a bola não bateu na rede. Diria que isso tido como “arte conceitual” é na verdade um exercício de crítica, mas não tem nada de artístico. Proporia que a ela nos referíssemos como “Crítica Material”. Pois a crítica (como o jornalismo ou a historiografia) operam no âmbito de signos que apenas remetem à Arte, MAS NÃO O SÃO. Esses signos sempre foram as palavras. O que esse pessoal está fazendo é apenas trocar palavras por coisas: barulhos, objetos, vídeos ou mais comumente o vazio.


Rambo e mais 5 filmes pouco óbvios que adoro

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Outro dia resolvi relaxar revisitando um marco de minha infância: o filme "RAMBO: programado para matar". (Aproveitando um dos 1.800 DVDs recentemente adquiridos pelo Sebo Baratos da Ribeiro. Corra que eu só segurei uns 50 títulos: ainda restam uns 1.750 lá na livraria!)

É muito melhor do que eu me lembrava. É EXCELENTE.

NÃO mata ninguém. É curioso que as ótimas cenas de ação tenham contribuído para um sub-gênero apologético do militarismo norte-americano, e o estilo sóbrio de "First Blood" (título original) tenha descambado nos maneirismos estrambólicos que vieram depois...

Pontos maneiros que o filme aborda:

1) a marginalização dos pobres, andarilhos (e do lumpemproletariado em geral) e, portando, dos "hippies" em geral (no sentido de outsiders: Stallone poderia, por seu visual, estar no filme "Sem Destino").

2) os traumas psicológicos e físicos dos veteranos de guerra (o filme começa com uma visita de Stallone a um companheiro, que vivia num gueto negro e pobre nos arredores da cidade em que a história se passa. Lá ele descobre que o amigo morreu de câncer, provocado pelo contato com o gás mostarda usado no Vietnã).

3) a tradição miliciana do interior dos EUA - os assistentes do xerife local tentam dissuadi-lo de perseguir John Rambo quando descobrem que ele é um veterano de guerra condecorado (e também porque notam a arbitrariedade da vendetta em que o xerife está se metendo), mas o sujeito brada contra "os babacas de Washington" e se declara único responsável por "sua" comunidade, com poderes pra fazer o que bem entende (e o exagero no pesado armamento que a polícia de uma cidadezinha no cu do mundo certamente foi proposital). Além disso, o Coronel Trauman, apesar de sua patente, é totalmente hostilizado pelas autoridades locais. (Uma pena, aliás, que a interpretação do ator que faz o Coronel seja tão caricata.)

4) sociedade do espetáculo: a perseguição entra num caminho sem volta depois que chegam as equipes de TV, que pintam o pobre do Rambo como um sociopata e legitimam o circo.


Enfim, o filme é muito bem dirigido, e o final é sensacional, porque rompe com as expectativas do público.

No clímax do embate entre Rambo e o xerife, quando todos esperam uma bala na testa do vilão, o coronel entra em cena.

Rambo, que pouco fala durante todo o filme, faz então um belo monólogo sobre seus traumas de guerra e sobre a falta de perspectivas na sua volta à vida civil. Uma bela interpretação, com direito à muitas lágrimas e um abraço comovente no coronel - naquele momento super incomodado com a demonstração de afeto, apesar da óbvia intimidade / amizade que eles tem.

Vale a pena ver, de coração aberto.

"O filme de 1982 foi dirigido por Ted Kotcheff, produzido por Mario Kassar e Andrew G. Vajna, com roteiro de David Morrell, Michael Kozoll, William Sackheim e Sylvester Stallone. A história é baseada na obra de mesmo título de David Morrell, publicada em 1972. O título original First Blood refere-se à frase do personagem Rambo They drew first blood, not me!, dita durante o filme."

APROVEITO PARA RECOMENDAR OUTROS FILMES que talvez não figurem nas listas de grandes obras primas da Sétima Arte: 


1) O rei da comédia / The King of Comedy (1983)
Digirido por Martin Scorsese

Jerry Langford (Jerry Lewis)  é um consagrado apresentador de TV, já cansado do assédio dos fãs e incapaz de despachá-los com muita gentileza. Entre seus fãs mais ardorosos estão o aspirante a comediante Rupert Pumpkin (Robert De Niro) e a histericamente apaixonada Masha (Sandra Bernhard). Depois de se sentir menosprezado por Jerry, Pumpkin decide seqüestrar o ídolo, com a ajuda de Masha. O plano é obrigar o canal de TV a permitir que Pumpkin se apresente no horário nobre, em rede nacional.


 Costumam descrever o filme como uma comédia, mas ele é soturno demais para se encaixar no gênero. A sociopatia do personagem de Robert De Niro é tamanha, e os trejeitos tão parecidos, que posso imaginar Scorsese pensando no protagonista de “Taxi Driver” (1976) em outro contexto.

O final é bastante perturbador. Uma crítica à cultura das celebridade e à espetacularização do jornalismo, na linha de “Assassinos por Natureza” (1994).


 2) Klute: O Passado Condena (1971)
Dirigido por Alan J. Pakula (que também assina “Todos os Homens do Presidente” e “Dossiê Pelicano, por exemplo)

Klute (Donald Sutherland) é um policial do interior que vai a Nova Iorque procurar um amigo desaparecido. No meio das investigações, ele conhece a prostituta Bree Daniels, que teve contato com o homem que ele procura. Os dois se apaixonam e ela passa a ser perseguida por um misteriosos assassino.

Jane Fonda levou o Oscar de melhor atriz pelo papel da meretriz – inicialmente oferecido à Barbra Streisand. Em sua autobiografia Jane Fonda conta que passou uma semana antes do início das filmagens passeando pelo baixo meretrício nova-iorquino, para se preparar para o papel. Quando nenhum dos cafetões se ofereceu para "representá-la", ela ficou convencida que não era desejável o suficiente para o papel e pediu ao diretor que a substituísse por Faye Dunaway


Além de ser um excelente suspense, o filme faz um retrato curioso da prostituta. Traça um “perfil psicológico” em consonância com certo estereótipo presente no imaginário do homem comum, mas que em tempos de correição política nenhum cineasta ousaria usar. Bree tem uma renda razoável, vive num bairro bacana, é razoavelmente elegante e tem hábitos típicos da classe média ascendente, inclusive faz terapia. Há várias cenas das suas conversas com a terapeuta, e nelas Bree confessa ser frígida, e concluiu ter optado pela prostituição porque desse modo se sente no controle da situação, e essa posição de “virilidade” é uma fonte substituta de prazer. Ou seja: se um homem a fizesse alcançar o orgasmo numa relação regida por afeto sincero e desinteressado, ela largaria o ofício. As feministas devem ter odiado esse filme!



3) Sedução e Vingança / Ms. 45 (1981)
Dirigido por Abel Ferrara

Quase desisti desse filme quando, logo no início, veio a cena em que a protagonista é estuprada. Não é uma cena tão realista quanto a de Monica Bellucci em “Irreversível” (2002), e na verdade é até uma cena bem rápida, mas justamente por “Ms. 45” ter um acabamento plástico primoroso eu me incomodei com a “capitalização” estética a partir de um episódio tão violento. Com o dedo suspenso sobre o botão do eject, ponderei que não seria razoável admitir uma única abordagem (a hiper-realista) em função do tema (o estupro).

Também me lembrei da crucial cena de violência sexual no incrível “Sob domínio do medo” (1971), em que a dona-de-casa Amy (interpretada por Susan George), irritada com o desinteresse do marido (Dustin Hoffman), provoca seu ex-namorado, mestre-de-obras encarregado da reforma na casa. A cena definitivamente termina em estupro – e pior: coletivo -, mas a situação parte de uma ação voluntária da moça. O diretor cria uma situação muito dúbia, e acho difícil alguém refutar que a personagem, até certo ponto, estava curtindo aquele sexo, ainda que a violência fosse um componente desde o início. O cineasta Sam Peckinpah, do clássico faroeste “Meu ódio será sua herança”, já foi considerado o “poeta violência” e vejo aquela sequência como uma corajosa discussão acerca do tabu que é a violência no sexo – algo muito corriqueiro, pelo menos no âmbito das fantasias; para verificar basta entrar em qualquer sex shop.

Como Sam Peckinpah, o diretor Abel Ferrara pega pesado e costuma incomodar críticos e platéias de estômago fraco. É dele o “Vício Frenético” de 1992, base da película homônima que Werner Herzog lançou em 2009 – apesar das diferenças, o diretor alemão realmente comprou os direitos de “Bad Lieutenant” para criar o filme estrelado por Nicholas Cage. Ferrara, que começou com curta em Super 8, se profissionalizou em séries policiais para a TV, como “Miami Vice” e Cat Chaser (adaptação de romance de Elmore Leonard). Seu filme de 1990, “O rei de Nova Iorque”, lhe rendeu acusações de racismo, machismo e apologia às drogas.


 Voltando à “Ms. 45”: Abel Ferrara é um formalista primoroso, e um bom exemplo é a composição dos quadros na sequência em que a protagonista, Thana, é encurralada por uma gangue em algum lugar do Central Park. A sequência acontece em algum monumento dentro do parque, e o diretor usa as colunas neo-clássicas, o jogo de sombras e o desenho do pátio com um arrojo digno dos grandes pintores figurativos. A direção de arte de “Ms. 45” me remete à  “Blank Generation”, de 1980 (dirigido por Ulli Lommel e estrelado por Richard Hell, da cena punk nova-iorquina) e ao cult “Donnie Darko”, de 2001 (do estreante Richard Kelly). Ou seja: estudantes de cinema – e meu amigo Renato Lima, que trabalha com storyboard - vão pirar com os ângulos da câmera, composição de quadro, cortes e montagem desse filme. A trilha sonora também impressiona, e não se trata de canções.

É um triller, mas acho que Abel Ferrara também estava discutindo o feminismo radical, do tipo que fez Valerie Solanas atirar em Andy Warhol e escrever o manifesto S.C.U.M.. (publicado em 1967 e que prega o combate aos homens e a instauração de uma sociedade exclusivamente feminina). Conta a história de Thana (a bela Zoë Tamerlis Lund), que é muda e trabalha numa confecção voltada para a alta costura. Certo dia ela é violentada no caminho para casa, e ao chegar no seu apartamento ainda dá de cara com um ladrão, que a vê desgrenhada e com as roupas rasgadas, e tenta estuprá-la. Thana consegue reagir e mata seu atacante. Desesperada, acaba esquartejando o sujeito e guardando os restos na geladeira. Ela passa a andar com a pistola 45, que tomou do bandido, no bolso, e acaba intercedendo em favor de outras mulheres que vê em perigo, com consequências fatais para os homens que cruzam seu caminho.


O que poderia ser uma fábula hardcore sobre justiça acaba se tornando a história de uma seral killer. Thana vai ampliando sua concepção de “machismo criminoso” a ponto de ver como alvo um garoto chinês que estava nos amassos com sua namorada. Até o cachorro da vizinha passa a correr perigo (apesar dele ter sido útil, quando Thana literalmente faz carne moída de sua primeira vítima e a serve ao animal!). Mas a cena de maior crueldade não é a mais sangrenta: um cara começa a flertar com Thana num bar, mas logo está desabafando sobre o pé na bunda que levou da namorada, e a maluca acaba induzindo o sujeito ao suicídio.

Outro filme que deve irritar feministas e também psicanalistas. Thana é apresentada desde o início como uma tímida crônica, sexualmente travada. À medida em que vai se aprimorando como assassina, a moça vai “descobrindo” sua sensualidade, caprichando na maquiagem e aumentando o decote. O apoteótico final é um perturbador massacre numa festa à fantasia, no apartamento dos amigos de Thana, rico de simbolismos sobre gênero, criados a partir das fantasias que as vítimas usam. Na cena anterior ela está se preparando, vestindo a parte de cima da fantasia de freira e uma lingerie sensual, com cinta-liga e tudo. Ela olha com luxúria para a 45 e beija cada uma das balas da pistola, enquanto passa o batom.


”Ms. 45” parece ser uma variação temática do seu primeiro longa-metragem, “O Assassino da furadeira” (1979), sobre um artista plástico que enlouquece e vira um serial killer. Esse outro eu não vi.


 4) Uma questão de classe / Class (1983)
Dirigido por Lewis John Carlino, cujo grande mérito parece ter sido o obscuro “O Dom da Fúria”, um drama familiar.

Mais um filme que vi aos 16 anos, um período particularmente deprimente em minha vida, quando estudava de manhã, cochilava depois do almoço e esperava ansiosamente pela madrugada, quando meus pais e irmãos estivessem dormindo, para que pudesse sonhar embalado pelas sessões Corujão, na Globo.

Enxerguei aqui o pioneirismo naquele estilo de comédia juvenil que John Hugues consagraria. Nele debutaram Andrew McCarthy (o par romântico de Molly Ringwald em “A Garota de Rosa Shocking”)e John Cusack, por exemplo.

Mas “Class” é bem mais dramático do que seus pares, até pelo fato do amor ir muito além do platonismo: trata de uma relação plena, sexualmente falando.


Andrew McCarthy interpreta Jonathan Ogner, que entra para um colégio particular para garotos grã-finos. Apesar dos trotes, acaba firmando sólida amizade com o veterano Skip (Rob Lowe), que se considera um sedutor sagaz. Inconformado com a inabilidade de Jonathan com as meninas, Skip decide dar um empurrãozinho no amigo, e arma um fim de semana em Chicago, para onde Jonathan é mandado com a indicação dos lugares certos para frequentar. O tímido rapaz acaba num movimentado bar, farto em “desquitatas” jovens e aventureiras. Andrew McCarthy se dá mais do que bem: acaba na cama de um motel com Jacqueline Bisset, e obviamente que Jonathan vai se apaixonar por Ellen. Só que vai descobrir que Ellen é na verdade a mãe de Skip, o que bota em risco a amizade dos rapazes.


5) O Pagamento Final /  Carlitos´ Way (1993)
Dirigido por Brian De Palma

Carlito (Al Pacino) é libertado da prisão graças a um amigo, advogado almofadinha, sem-noção e junkie – magistralmente interpretado por Sean Penn. Decidido a se manter “na linha”, com planos de guardar dinheiro para poder viver nas Bahamas, Carlitos descola um emprego de gerente numa boate - eventualmente freqüentada pelos gangsters locais. Ninguém bota muita fé nas boas intenções de Carlitos, até pela reputação sinistra que ele tem no submundo, e suas novas atribuições profissionais exigem que ele seja durão de vez em quando. Mas quando ele se recusa publicamente a demonstrar respeito por um dos bandidos emergentes da área, demasiadamente vulgar aos olhos de um cara old-school como é Carlitos, ele arranja um problema realmente sério.




Provavelmente esse é considerado um filme menor de Brian de Palma, mas talvez seja meu predileto. Aliás, meu filme predileto do Tarantino é justamente “Jackie Brown”, uma assumida homenagem ao mestre. Viggo Mortensen faz um papel secundário e Luis Gusmán interpreta o bandidinho metido a figurão, Pachanga.

DIÁRIO DE UM LEITOR: "O Boxeador", de Reinhard Kleist

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Estava lendo "O Boxeador", lançado pela editora gaúcha 8Inverso, mas tive que parar, pra tomar fôlego e digerir a história, fortíssima, do judeu polonês Hertzko Haft. O livro é em QUADRINHOS, mas sua leitura exige tanta disposição e estômago forte quanto o mais dramático romance. E é tão magistral quanto.

A arte é belíssima, e o traço de Reinhard Kleist se inspira diretamente em Will Eisner(criador do Spirit e autor do fundamental "Quadrinhos e Arte Sequencial), principalmente no início, quando narra o cotidiano dos judeus da aldeia de Belchatow. Mas há um recurso muito bem utilizado, que leva o artista para um campo mais expressionista e abstrato, onde impera as sombras (ele não usa meio tons): à medida que o protagonista vai sendo tragado pela máquina de extermínio nazista, nos campos de concentração, definhando fisicamente e testemunhando o horror, os traços ficam mais grosseiros e sutilezas, como expressões faciais, desaparecem. Uma sequência impressionante está entre as páginas 50 e 52, quando Hertzko vai trabalhar nos fornos crematórios.

Acho que todos nós já fomos informados quanto aos horrores do Holocausto, e já nos chocamos com tamanha atrocidade. Mas eu me surpreendi com os várias passagens desse livro.
E me passou pela cabeça que ainda não conhecemos o totalidade do Mal que se instalou na Europa, naquele período.

Porque para além da violência nazista, há as ainda mais chocantes estratégias que as vítimas tiveram que usar para sobreviver. Uma outra página terrível é a 81, em que Hertzko, acordando no meio da madrugada, no alojamento dos prisioneiros, testemunha um assassinato seguido de canibalismo. E não há nenhum alemão envolvido no crime.

A novela gráfica é baseado na autobiografia do boxeador, entitulada "Um dia eu contarei tudo: uma história de sobrevivência". É por isso que acho que ainda vamos nos surpreender com  o grau e alcance desse Mal: os próprios sobreviventes, compreensivelmente, não tiveram coragem de admitir o que tiveram de fazer para manter-se vivos, ou o que viram outros fazendo.... Me parece que grande parte das histórias envolveram algum tipo de negociação dos judeus com seus algozes, de traição baseada no instinto de sobrevivência. Ninguém se orgulha disso, e os poucos capazes de confessar só o fazem à beira da morte. Hertzko nasceu em 1925 e só tornou pública sua história em 2009.


Tudo isso me faz pensar também no seguinte:

A maldade, quando institucionalizada, principalmente pelo Estado, é maior do que a soma das maldades individuais. O todo é maior do que a soma das partes.  E é por isso que de todos os possíveis males da humanidade, não vejo nenhum que se iguale ao Estado.

Em "O Boxeador" tomamos conhecimento também de oficiais alemães que são contrários à ideologia nazista, ao anti-semitismo, oficiais que tem até consciência de que terão de responder por seus atos. Esses oficiais protegem alguns prisioneiros, na medida do possível, e mostram que a corrupção e o contrabando funciona às vezes como resistência a um sistema político arbitrário e opressor. Numa situação limite como aquela não há possibilidade de luta coletiva, muito menos de luta idealista, mas o justo desejo individual de não morrer legitima as negociatas que possibilitam a sobrevivência.

Num certo diálogo, Hertzko pergunta ao oficial porque ele o está ajudando. O alemão diz que quando o mundo se divide entre lobos e ovelhas, é difícil não escolher tornar-se lobo. E propõe o seguinte escambo: ele ajuda o prisioneiro, e no futuro, quando o nazismo cair e ele for julgado, o polonês promete testemunhar em prol do oficial nazista. E Hertzko topa, claro.

Obviamente que é difícil comparar a situação dos judeus alemães e poloneses em 1942 com qualquer outra situação contemporânea.

Mas guardadas as devidas proporções, penso na injustiça que impera hoje no Brasil.Penso tanto na inconfiabilidade da nossa Polícia quanto na arbitrariedade da ação fiscalizadora estatal e na falta de perspectivas de recompensa para o trabalho honesto. Esse ambiente empurra os homens para a barbárie. Numa situação em que não se pode confiar em ninguém, não se pode esperar ser recompensado por nossos bons atos, é cada um por si, doa a quem doer. Não sobra espaço para ética.


Podemos culpar o indivíduo quando é a sociedade que optou pelo Mal?

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Confira o site da Editora 8Inverso: o catálogo é incrível e eles estão oferecendo frete grátis para as compras feitas por lá:


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Recomendo ainda outro livro, este de não-ficção:

"A indústria do Holocausto" foi publicada pelo cientista político Norman Finkelstein em 2000, nos EUA, e chegou à nós um ano depois, pela editora Record. O autor é judeu, filho de sobreviventes de campos de concentração que migraram para Nova Iorque.


Seu livro é uma crítica ao uso político que o Estado de Israel faz da memória do Holocausto, de modo a justificar sua política externa e o tratamento dado aos palestinos árabes. (Porque devemos lembrar que há judeus que vivem há gerações no território antigamente conhecido por Palestina - uma área que inclui também a Jordânia.) Há também uma denúncia mais pontual, mas seríssima, sobre o destino da indenização paga pelo governo alemão às entidades que representam as vítimas do Holocausto. Se não me falha a memória, ele denuncia que a grana acabou beneficiando famílias poderosas, com conexões políticas, não necessariamente as mais vitimadas pelo nazismo.

Mas a questão que achei mais importante, dentre as levantadas por Finkelstein, é o uso da memória do Holocausto para afastar os judeus dos outros povos, ao invés de aproximá-los. O autor não apenas lembra que outras pessoas foram perseguidas - socialistas, ciganos, homossexuais e deficientes físicos, por exemplo -, mas aponta as nefastas consequências de se construir um "sofrimento exclusivo dos judeus", como se a etnia importasse quando algo tão terrível acontece, como uma mãe ter seu bebê executado em seus braços. É este o maior crime: transformar uma experiência que deveria derrubar muros numa narrativa que cria um fosso entre os homens. 

"Na história da música de Liverpool, as bandas que mais importam são Beatles e Deaf School"

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DEAF SCHOOL é uma das minhas bandas prediletas, e seu som é dos mais difíceis de definir / descrever.É uma banda de rock, com certeza. Mas há uma dramaticidade nela... As canções evocam cenas tão envolventes, que me vem à cabeça a expressão “rock cinemagráfico”. Como se cada canção fosse um curta-metragem traduzido em notas, versos e solos de guitarra ou piano. (Uma sensação que também tenho ao escutar certos discos do Tom Waits.)

Faz tempo que descolei os LPs, mas só hoje decidi caçar mais informações na web a respeito. Da primeira vez que comentei com algum amigo acho que descrevi como um híbrido de Roxy Music e Dexy´s Midnight Runners.

O artigo da Wikipédia os define como uma banda de art rock / new wave, o que já denuncia o fracasso da crítica em categorizar a música desses rapazes de Liverpool.  (Art Rock e New Wave correspondem, na verdade, ao “ETC”, é uma expressão coringa, aplicável à tudo o que não se conseguiu rotular de outro modo, respectivamente no início dos anos 70 e no fim. Da mesma maneira nos anos 90 se usou o termo "rock alternativo" e hoje se apela para o “indie rock”.)


 Vamos às credenciais:  o frontman do Frankie Goes to Hollywood, Holly Johnson, afirmou que eles “renovaram a música de Liverpool para toda uma geração”. O jornalista e fundador da revista Mojo, Paul Du Noyer, foi além: “em toda a história da música de Liverpool, duas bandas são as que mais importam. Beatles é uma e a outra é o Deaf School”. O guitarrista Clive Langer depois produziu o Madness e o Dexy´s, ambos fãs declarados do Deaf School -, além de trabalhar com Morrissey, Bowie e Bush, entre outros. Clive também é co-autor, com Elvis Costello, do hit “shipbuilding”.

Os outros músicos, após o fim do Deaf School em 1978, fizeram parte de bandas como The Planets (o baixista Steve Lindsey), Original Mirrors (o cantor Enrico Cadillac, já usando seu nome de batismo, Steve Allen) e The Perils of Plastic (Enrico / Steve de novo). O multi-instrumentista Ian Ritchie se tornou um prolífico compositor, produtor e “session musician”. O outro cantor, Erik Shark, foi para os bastidores da indústria musical, cuidou de carreiras como a do Half Man Half Biscuit. Em 1988 houve um breve comeback, para uma turnê onde participaram convidados ilustres como Reeves Gabrels (na época tocando com Bowie no Tin Machine), Nick Lowe e Lee Thompson, do Madness. A partir de 2006 a banda praticamente voltou à ativa, mas apenas para turnês breves e esporádicas. Em 2011 lançaram um EP com 5 novas composições.

A banda foi formada meio por acaso: uns amigos que estudavam no Liverpool Art College resolveram montar uma banda para animar o baile de natal dói colégio. Era 1973 e bastava o entusiasmo para ser aceito na trupe: ninguém sabia tocar direito e umas 13 pessoas acabaram subindo no palco. Gostaram da brincadeira e acabaram vencendo o concurso de rock & folk da Melody Maker, atraindo a atenção de Derek Taylor, da Warner.


O disco de estréia, lançado em 1976, se chama “2nd Honeymoon”.Talvez seja uma obra conceitual. O lado A é um tranqüilo passeio por uma noite de sexta-feira. “What a way to and it all” é um sujeito afrouxando a gravata, avisando pro colegas do escritório que já deu, ele não agüenta mais: é hora de  cair fora. “Where´s the weekend?”, a segunda canção, é exatamente sobre o que o título sugere – e poderia figurar entre as grandes canção sobre o tema, ao lado de “here comes the weekend” do Jam ou “Friday i´m in love” do Cure. Em “Cocktails at 8” o nosso herói já está no bar, à espera de um encontro, mas a garota lhe dá um bolo. Musicalmente, as canções soam como se Kurt Weill tivesse nascido 40 anos mais tarde e compusesse rock.  Se você conhece o lado B do álbum “Country Life”, do Roxy Music (com a gloriosa sequência “Bitter Sweet” > “Triptych” > “Casanova” > “A really good time” > “Prairie Rose”), fica fácil imaginar. Um clima meio cabaret, muito teatral, interrompido apenas pelo country-rock de “Knock Knock Knocking”.

Como se fosse um show, é no lado B, quando os motores já esquentaram, que ao banda se joga no rock´n´roll: “get set ready go” é aquela perfeita conjugação de tradição & vanguarda, um hino à altura de “Rock Lobster” do B-52´s, com o coro feminino respondendo às provocações do cantor principal, um solinho à Chuck Berry, um crescendo a la “twist and shout” e um solo de saxofone que me remete ao tema de “Família Adams”, tudo isso com um arrojo que não existia antes do rock progressivo, e pausas teatrais, irresistíveis.  Tudo isso em menos de 3 minutos e fechado por um pianinho honky tonky arretadíssimo.


Segue um momento quase AOR, com a épica “Nearly moolit night hotel”, sobre um romance casual, entre viajantes fazendo um pernoite num hotel, na véspera do cara partir numa viagem de negócios, para a Lua (?!).  Ele esbanja romantismo no esforço de seduzi-la, ela topa, mas insiste que é melhor sendo assim, fugaz. Ele fala do quanto queria ficar e faz juras cínicas de que voltarão a se encontrar. O recurso do diálogo entre o cantor e o serelepe coro (e o que fazem não poderia ser resumido à expressão “backing vocals”, já que elas raramente “estão no fundo”) retorna em “hi Jo hi”.

Instrumentalmente o disco é incrível, mas sem virtuosismos excessivos. Além dos pianos e sopros que se somam ao formato tradicional do rock (bateria, baixo e guitarra / violão), há os belíssimos acordeão e assovio de “Room service”, por exemplo. Tão simples quanto esplêndidos.


Mais um rock´n´roll na penúltima faixa do disco: em “Snapshots” escutamos o cantor berrar pela primeira vez. É uma canção de despedida. “No smiles / It´s better for both us this hard way / We must find the best way for this thing can´t last”. A segunda tentativa de lua-de-mel não deu certo. Mas as imagens podem se aplicar também a um romance de final de semana, uma noite de aventuras amorosas nos bares da vida, que na maioria das vezes terminam sendo apenas isso: boas lembranças.

O diretor do filme faz então um cartada de mestre, no epílogo. A última canção do disco é a única cantada apenas por Bette Bright (que depois se casaria com Suggs, cantor do Madness), jogando os holofotes sobre a outra metade do affair. Faltam 10 minutos para a meia-noite. Não sabemos bem se ela está no seu quarto, depois de voltar da farra, ou se num camarim, depois do último número do show. (A canção se chama “Final Act”.) Ela está tirando a maquiagem, e repousam sobre a penteadeira as flores e cartões enviadas pelos fãs / pretendentes.  Ela está satisfeita, quase orgulhosa, pela farra / pelo show, mas olha no espelho, e não gosta do que vê. Fim. Sobem os créditos.


Tenho alguns guias de bandas de rock em casa, e o Deaf School consta em apenas um deles, dedicado ao rock alternativo. O livro descreve a banda como mediana, acusando-a de não ter desenvolvido uma sonoridade particular. Só que o texto soa, para mim, mais como uma queixa pelo Deaf School não ter feito um som reduzível à um dos sub-gêneros do rock. O que me parece mais uma qualidade do que um demérito. Mas realmente deve ter sido um problema: a sonoridade deles não era muito pop no sentido bubblegum / radiofônico (segundo os relatos, a verdadeira magia acontecia ao vivo),  nem era empolada como o progressivo que então imperava entre a turma mais cabeçuda, e ainda teve de enfrentar a explosão do punk.



O segundo álbum, “Don´t stop the world”, lançado em 1977, parece criado a partir da consciência desse “problema”. Começa já acelerado, com a faixa tíitulo, e traz a banda para perto do Magazine (do Howard Devoto) e do Damned, bandas punks que adoro. As duas faixas seguintes, “What a jerk” e “Darling”, já resgatam os sopros e a dinâmica vocal que marca o álbum de estréia, e “tropicalizam” a jornada: imaginem o Genesis tocando um mambo, ou pensem no Talking Heads, e terão uma idéia do clima. Mas os timbres e efeitos de guitarra já estão todos num âmbito mais seco e rasgado, familiar à estética punk. Depois de praticamente uma vinheta, apenas com voz e piano (a faixa “everything for the dancer”), chega a explosiva “Capaldi´s Cafe” : uma galopada sônica, puxada por um desempenho enérgico e maio que “largadão” dos vocalistas, que cita “hang on sloopy” ( o hit de 1964), com guitarras e sopros martelando, e uma coda que parece homenagear as faixas de abertura dos 2 primeiros discos do Roxy Music.


Se o primeiro álbum do Deaf School parece ter sido composto no piano, este segundo dá a impressão de ter nascido de guitarras elétricas & sua pedaleira. O lado B abre com um rockão perfeito, “Hypertension yeah yeah”. Riffs genialmente marcantes: algo entre Journey e Thin Lizzy, com a sofisticação de um Steely Dan – o teclado arrebenta nesta faixa, em especial na coda. Tanto que eu não falei das letras até agora. Simplesmente porque o disco é mais enérgico e me faz querer levantar da cadeira e sair chacoalhando pela minha sala. Apesar de haver uma canção chamada “Rock Ferry” (puxada por um festivo piano “elton-johniano”) neste lado, é “It´s a boys world” que soa um tributo ao som elegante, sedutor & roqueiro de Bryan Ferry.


O clima teatral, aquela versão glam-prog-de-Cole-Porter, temperada agora por uma guitarra-sem-freios, volta em “Taxi”, onde novamente brilha a estrela de Bette Bright. Um contrabaixo cheio de swing, pontuado pelo saxofone maroto, antecipa o tipo de fusão entre tradição e vanguarda que o Style Council faria anos depois. E a faixa final, “Operator”, honra a tradição inaugurada no debut: fica à cargo de Bette. È um soul na tradição do Commitments.

Esses dois discos foram relançados num único álbum duplo, pela Warner. É a edição que tenho.


O último LP lançado pelo Deaf School saiu no ano seguinte: “English Boys / Working Girls”. Nele a banda alcança uma sonoridade mais robusta, coesa e objetiva. Mais ou menos como aconteceu com Bruce Springsteen, que iniciou a carreira com 2 discos mais suaves – e sendo equivocadamente recebido como uma novidade folk - , antes de reinventar o “wall of sound” do Phil Spector, à seu próprio modo – graças à troca de baterista e à participação de Steve Van Zandt na produção de “Born to Run”. Não se trata dar à platéia o que ela quer, ou de surfar a onda do momento. Meu palpite é que o som se transforma em função do convívio com certo público (o punk, seu público natural) e da saudável ambição de se fazer ouvir, em meio àquela explosão de criatividade que marca os anos de 1977-78.


O álbum começa já na quinta-marcha, com “Working Girls”, evidenciando que o Deaf School já entra mais tarde no palco, fechando e não abrindo a noite. A melhor banda para dar como referência é o Ultravox do ano de estréia (1977, quando lança dois álbuns), ainda com John Foxx no vocal. Em seu canto de cisne o Deaf School apresenta um repertório que, como o Ultravox, alterna entre power-pops-temperados-com-detalhes-rebuscados (“Wide boys”, “Rockwork”, “While i´m still alive”, “the man who dies everyday”) e números dramáticos, com variações de andamento e espírito mais experimental (“Life at Rainbow´s End”, “I want to be a machine”, “the wild, the beatutiful and the damned”, “My sex”, “Hiroshima mon Amour”). Bons exemplos dessa faceta art-rock, no caso de “Englosh Boys / Working Girls” do Deaf School, são “golden showers” e  “I wanna be your boy” - que passa pelo reggae antes de chegar no explosivo e garageiro final. E o único retorno ao clima de cabaret do primeiro disco está na faixa seguinte, “morning after”.


“Thunder and lightning”, por exemplo, com Bette Bright deslumbrante no vocal principal, é um hit de pista potencial, um single redondíssimo e com uma bateria cavalar, tão provocante quanto “Sex (I´m a...) da banda new wave Berlin– com a vantagem de ser instrumentalmente muito mais complexa. Um momento que conjuga Blondie, X-Ray Spex e Heart, pra ficar em performances roqueiras femininas. Pelo visto, ou melhor, pelo escutado, Bette estava a caminho se tornar uma frontwoman de primeira grandeza.... O que só aumenta a tristeza pelo Deaf School ter debandado logo depois. “All queued up” é outro grande single punk / new wave estrelado por ela, com riffs de guitarra sensacionais.

E das 12 canções do álbum que fecha a discografia do Deaf School, cinco tem menos de 3 minutos. Do restante, a mais longa não chega a 4 minutos. Exatamente como deve ser um grande disco pop! E nesta fase embrionária do punk, quando ele ainda era um sinônimo para new wave, há trocentas bandas com grandes instrumentistas, dando aulas fenomenais de concisão e objetividade.  (The Boys é uma delas.)


Poderia passar horas escutando o Deaf School, tentando registrar meu entusiasmo no papel. Mas eu espero já ter alcançado a meta de te deixar curioso.

Estava batendo um papo ontem com o Mauk Garcia, das bandas Big Trep e Cadillacs Malditos, e ele falava justamente sobre o sentido de vale-tudo que o punk teve em seus primeiros anos, no melhor dos sentidos. A partir de um desejo bastante simples, de trazer de volta pro rock a urgência e a descontração ao rock, criou-se um termo capaz de abranger bandas muito diferentes entre si.  


Nesse contexto recomendo ainda outros dois LPs que adoro: a estréia do Rubinoos (de 1977) e “tenement steps” do Motors (de 1980).


E fecho com uma “fofoca” curiosa: Tommy Dunbar , da californiana Rubinoos, processou em 2006 a Avril Lavigne, alegando que o hit “Girlfriend” era um plágio de “I wanna be your boyfriend”. Em 2008 um acordo confidencial encerrou o litígio.


Sobre música e sexo

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Me ocorreu agora há pouco, enquanto abria as janelas, me servia de mais uma xícara de café e olhava pra pilha de LPs que acabo de conseguir, e ainda não tive tempo de escutar.

É possível que você tenha tido um único momento com alguém, e que tenha sido fantástico.Uma única trepada sensacional, parte de uma história breve, de um só capítulo. Ambos estavam inspirados e bem dispostos, as circunstâncias ajudaram, mil afinidades corpóreas se revelaram ao menor esforço.

Mas é raro. Via de regra, mesmo havendo química, é pela quantidade que se alcança a qualidade. Conforme o casal "se estuda", ajustes vão sendo feitos: ritmo, coreografia e até os temas se aprimoram. Cria-se um código de olhares e gestos sutis, que orientam cada movimento, alteram os rumos de cada performance.

Acho que a dinâmica é parecida, quando se trata de música.

Você pode viver um momento de júbilo ao escutar uma canção pela primeira vez. Quando o acaso lhe apresenta uma trilha sonora que traduz com perfeição seu estado de espírito, ou, com mais sorte ainda, essa sintonia se aplica ao contexto. É a canção que você dançou na College Rock Party, abraçado aos amigos. É a canção que tocava no seu i-pod enquanto sacava aquela garota incrível, e veja só, ela correspondia com o olhar. É a canção que salvou aquele dia terrível, quando ecoou do apartamento vizinho, te explicando o que era aquele nó em sua garganta.

Mas se a canção te comove, é porque ela é um portal para certos sentimentos, dilemas e idéias que provavelmente te acompanharão ainda por muito tempo. Você dificilmente vai "resolve-los" de uma tacada só.


Você vai voltar àquela canção, e a jornada ainda vai render muito o que pensar e sentir. Sobre a vida, mas também sobre os sons, acordes, harmonias, timbres etc. Assim como ao ver um filme ou um quadro pela enésima vez, você percebe algo significativo no segundo plano, num detalhe, talvez até irrelevante para a compreensão geral da obra, mas que foi uma contribuição consciente do artista, e contribui para tornar a obra tão impactante.

E é aí que está a importância em ter a canção. Não estar à mercê do ocaso. Esperando que o rádio, o DJ ou o vizinho dê novamente o play. Ela precisa estar ali, para quando você precisar. (E talvez você só se dê conta de que precisava depois escutar.)

Então ok: você baixa umas dezenas de tracks por dia, as acrescenta ao HD externo, junto das outras milhares. E espera que o shuffle do media player a resgate, um dia. Só que estar à mercê do shuffle não é muito diferente de estar à mercê do rádio, do DJ ou do vizinho.

Mas você cria umas playlists, certo? Então, pelo que entendi, você cria seus próprios "discos virtuais".


Mas voltemos ao sexo: cada amante tem suas "jogadas de mestre", algum lance que ninguém mais faz tão bem. E você só pode imaginar como seria o amante perfeito, reunindo as características prediletas de cada parceiro(a) do seu currículo. Como eu posso imaginar uma banda com o Bruce Springsteen no vocal, o Mark knopfler na guitarra solo, o Johnny Marr na guitarra rítmica o Peter Hook no baixo e o Don Brewer na bateria (sem pensar muito: só puxei uns caras que admiro). Mas não vai acontecer. A realidade se impõe.

Até porque só temos acesso às pessoas no encontro, e o encontro mexe com as pessoas. Aquela namorada talvez só tenha sido tão incrível porque era a SUA namorada. Talvez com outro ela seja uma péssima namorada! O bom sexo é sempre mérito de ambos, e é apenas parte do encontro - o papo antes e depois, a história prévia, tudo isso possibilitou aquele momento. E toda canção traz algo do contexto em que ela nasceu. Conhecer o artista, a época, o assunto que ela aborda e, mais importante, as outras canções que a acompanham no disco, enriquecem a audição, como conhecer melhor o amante resulta em um sexo melhor.

Ter o disco em casa é como estar namorando.
É estar num relacionamento de corpo & alma, por inteiro.

Com uma vantagem: o relacionamento amoroso - via de regra! - exige a monogamia. No caso da música, não. Você pode ter um monte de discos ao mesmo tempo. Na verdade, para dar conta de toda a complexidade da vida, você PRECISA de muitos discos.


Mas é claro que se você chegar aos 80 anos tendo tido 12 casamentos, provavelmente nenhum desses casamentos terá valido muito a pena. Do mesmo modo, se você acumula um zilhão de terabytes de música, provavelmente não está escutando nada direito.

Mas é claro: algumas pessoas tem mais amor (ou tempo!) pra investir em relacionamentos do que outros....


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Minha mais recente obsessão tem sido Bruce Springsteen. 

Algumas duram um verão. Outras uma semana. Uma das mais duradouras foi David Bowie, a partir do fim da minha adolescência - e provavelmente tinha a ver com a ziquezira hormonal típica desse momento. Ando até com vontade de escrever um artigo fazendo um balanço dessas infinitas horas que passei escutando a música do Camaleão. Meio que uma resenha crítica de toda sua discografia, ousando até imaginar como seriam os discos perfeitos. (Por exemplo: eu juntaria as melhores canções de "Scary Monsters" e "Let´s dance" num só LP, que com o acréscimo de "Loving the alien" - do álbum Tonight - resultaria nos melhores 35 minutos de música que ele produziu entre 1980 e 1984.)

Levo minhas obsessões muito a sério. Vou atrás de tudo o que o sujeito já gravou, caço discos piratas, leio artigos e as biografias que encontro. Penduro poster na parede de casa. Leio a ficha técnica e acabo mergulhando também na obra dos músicos que trabalharam com o cara.

E no fim de setembro haverá uma noite em que poderei celebrar esse rock´n´roll "de raiz", tipicamente norte-americano (mas não necessariamente feito nos EUA: quer banda mais "americana" do que os Rolling Stones?!), com os amigos. Serei um dos DJs da primeira edição da festa Curto Circuito. A noite, batizada de Hungry Hearts, será dedicada ao Bruce Springsteen e à outras bandas afins. Quem dividirá as carrapetas comigo será o Cláudio Borges, que trabalha na Headbanger.


Enfim, taí o cartaz. 

Para saber como descolar o convite é melhor ligar para a livraria Baratos da Ribeiro: (21) 2256 8634. O lance é uma iniciativa de 4 lojas de discos do Rio de Janeiro. Além da Baratos, participam a Berinjela, Sempre Música e a Satisfaction.  


Resenha: “Dicionário Maquiavélico”, Mauk & Os Cadillacs Malditos (independente)

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Maurício Garcia está entre os músicos mais importantes da cena roqueira carioca, e isso não tem nada a ver com discos de ouro ou platina, mas com shows incendiários, em lugares nem sempre confortáveis, que inspiram a molecada a comprarem uma guitarra e formarem sua própria banda. Ou a fazerem uma tatuagem no dia seguinte e a cultivarem o topete.

“Dicionário Maquiavélico”, assinado por Mauk & Os Cadillacs Malditos,acaba de sair do forno e talvez seja o disco mais pessoal desta lenda do underground carioca. Mauk, como é mais conhecido, já esteve à frente de várias bandas, defendendo suas próprias composições, e já tocou em outras tantas. Tem feito isso há quase 30 anos e quem o vê em ação, no palco, ou simplesmente fazendo air guitar na pista de dança do Saloon 79, ou falando com entusiasmo sobre os discos que está ouvindo com o rapaziada, madrugada adentro, jura que ele acabou o colégio ontem e que sua lambreta está estacionada logo na esquina.


Não é apenas o figurino e cabeleira de Mauk que homenageiam as raízes do rock´n´roll. Trata-se de um compositor comprometido com o que há de mais fundamental nessa tradição musical: a primazia da guitarra elétrica, o clareza e objetividade das letras, a energia explosiva das interpretações, os arranjos sem firulas ou virtuosismos excessivos. Conforme ditava a cartilha da Motown (porque afinal rock e soul estavam conjugadas, em fins dos 50s e início dos 60s, no que se chamava de “música jovem”), 3 minutos é o suficiente para que ele apresente uma grande canção – e muitas vezes o recado está bem dado em 2 minutos e meio. Mas que ninguém se engane com a simplicidade: Mauk é um carpinteiro dos riffs de guitarra e um arranjador sagaz, com um faro especial na hora de recrutar seus escudeiros. E não há nada mais difícil do que cunhar uma canção pop, daquelas que você não se cansa de assoviar.

Há uns meses estávamos tomando uma cerveja no Porto Pirata: eu, Mauk e Duncan Reid– o inglês fazia escala na Praça da Bandeira, a caminho de Montevidéo, em turnê de lançamento de seu disco “Little big head”. A certo ponto da conversa, o ex-baixista da banda punk The Boys confessou que compõe no violão. Segundo ele, uma canção para ser realmente boa tem que soar bem mesmo quando reduzida apenas ao violão.


A canção que batiza o álbum, “Dicionário Maquiavélico”, é uma dessas pérolas que já nascem com jeitão de clássico de rodinha de violão. O argentino Horacio Guzman (Superpuestos Hijos de Lopez), faz uma participação especial, dedilhando a guitarra, burilando riffs, enquanto Mauk embala no violão uma clássica volta-por-cima-depois-do-coração-partido: “Agora deixei-me chegar ao ponto / com as bochechas vermelhas  do vento / Você me ensinou como é ter no coração uma pedra de gelo / Queimando no inferno, olhando pro céu / aprendi a lidar com a dor / Não é difícil suportar, somos milhões / e posso ter qualquer pessoa, menos você”. O disco foi produzido pelo também argentino Seu Cris, do estúdio La Cueva. Em tempo: está no fim da gestação o disco do Seu Cris & Dom Horário, consolidando essa ponte Rio-Buenos Aires. 

Como quase todo lançamento independente, inclusive da grana - sempre escassa -, esse disco não nasce com clipes superproduzidos a reboque. Por enquanto, o que achei no YouTube foram alguns registros antigos, mas que servem pra dar uma idéia... Mas mesmo esses registros o browser do wordpress não consegue localizar! Enfim.... vocês terão que se contentar com as minhas tentativas de traduzir sons em palavras!


Na sequência vem uma das minhas canções prediletas do álbum: “Problemas com a morte”. O trompete do Pedro Selector, emprestado da banda de B Negão, faz uma belíssima cama para uma das canções mais introspectivas do cardápio. Uma pitada levemente mariachi, que remete ao alternative country de bandas como Drive-By Truckers e Calexico, mas que remonta a Los Lobos e até ao Richie Valens.  Um dos melhores momentos de Mauk como crooner, seu refrão se repete várias vezes na coda, cada vez com menos empostação e justamente por isso me atingindo com mais força: “a morte me incomoda, a morte me incomoda, a morte me incomoda...” Comovente, sugere a paisagens da “América profunda”, um Road movie com trilha do Ry Cooder. Ou uma birosca freqüentada pelos roqueiros de uma cidade do interior, como Taubaté, de onde eu vim. Ou de São Carlos, no interior de São Paulo – onde aliás está o QG do selo Wildstones Records, que lança nos próximos dias a coletânea Weirdo Fervo #1 em LP, que traz um outtake das sessões de “Dicionário Maquiavélico”: “sábado á noite, domingo de manhã”.


A pergunta que não quer calar é: por que Mauk não gravou essas canções com o Big Trep, banda que ele fundou em 1986 e continua até hoje no batente?

Pressionemos o play em “Tão cego”:  o piano de Sérgio Pavanelli e o trompete do Pedrão fraseando com elegância, enquanto Mauk, na guitarra, pontua essa quase balada – embalada por uma linha de baixo quase chacoalhante. Big Trep, ou a Grande Trepada (o apelido acabou vencendo o nome oficial), nasceu quinteto mas é um trio há muitos anos, e faz rockabilly e psychobilly, O Cadillacs Malditos permite ao Mauk explorar outras referências. O Brian Setzer Orchestra é a das mais óbvias, mas a bagagem musical de Mauk é muito mais ampla. Uma de suas paixões, por exemplo, é Bruce Springsteen; um artista que soube conjugar, como poucos, a ferocidade do rock garageiro sessentista com a herança do soul e do country, alternando discos onde o violão está praticamente sozinho e outros com uma dúzia de instrumentos – eram 13 pessoas na banda, quando passou pelo Brasil no ano passado!

Em paralelo à Big Trep, Mauk teve muitas outras aventuras. (E para mostrar o quanto é difícil enquadrar músicos num ou noutro rótulo, vale dizer que o Skunk, fundador do Planet Hemp, chegou a tocar numa formação embrionária da Grande Trepada!) Mauk tocou com Os Esquizóides, Ricardo & Os Caras Que Não Tem Amigos, Lunik 9 e Manguaça. Atualmente é guitarrista também da excelente Oort Clouds, banda fundada por Francisco Kraus, ex-Second Come.  Estamos falando de quem cresceu durante a explosão do punk e new wave no Brasil. Mauk dividiu o palco com os Kães Vadius, S.A.R., K-Billy’s e os Garotos Podres, em 1987. Esteve no Cais, Garage, Espaço Retrô, Circo Voador e Madame Satã. Participou do “Boca Livre”, programa de televisão do Kid Vinil, junto com Little Quail & The Mad Birds, em 1989.


Dicionário Maquiavélico abre com “Fantoche”, combinação de 2 riffs nervosos e memoráveis, somados à uma linha de baixo sinuosa e um tanto soturna, impulsionadas por uma bateria acelerada e quase marcial - Robson “Vintage” Riva é dos batuqueiros mais escolados do Rio, e está à vontade como baterista dos Cadillacs. Uma abertura pé-na-porta, que remete à outras bandas atuais-mas-que-não-tentam-ser-moderninhas (como a australiana Deep Sea Arcade, que infelizmente não faz por aqui o mesmo sucesso que seus conterrâneos do Tame Impala), mas também a uns 10 anos atrás, quando Strokes e Artic Monkeys renovaram o interesse pelo pós-punk do Gang Of Four. Para chegarmos finalmente à fonte: o punk (ou o pub-rock) mais melódico dos Stranglers, Eddie & The Hod Rods, Tom Robinson Band ou Damned.


Já em “O último dia” encontramos várias camadas sobrepostas de guitarra, entre notas sustentadas e uivos rasgados – ecos de Pixies e Husker Dü? A bateria tribal me faz lembrar de grandes bandas do underground oitentista, como Escola de Escândalo, Smack, Kafka e o Finis Africae em seus primeiros registros. Chutaria que essa canção dói composta depois de algum ensaio do Oort Clouds, ou na época em que Mauk estava lapidando sua contribuição para o tributo ao Second Come – lançado recentemente pela Midsummer Madness. Já a temática road-movie da letra remete ao “Nebraska” um dos discos mais sombrios de Bruce Springsteen.

Aliás, eu talvez daria outro nome ao disco: “Morte, desencontros e fugas”, temas que se repetem ao longo dos 33 minutos desse enxuto disco. (Ah, se todos os artistas hoje fossem tão sucintos quanto Mauk & Os Cadillacs Malditos!)

Na faixa “Amargo do coração” temos o luxuoso órgão hammond de Sérgio Pavanelli, evocando o rock de garagem dos anos 60 – Seeds, Standells, Sonics etc– e principalmente a sua reinvenção oitentista - The Three O´Clock, The Godfathers ou Dukes Of Strathosphere. Mas a letra sobre um amor desencontrado e cheio de tesão, cantado em tom de ressentimento, tem mais a ver com a fúria dos paulistas dos Haxixins. “No olho do furacão” é outra canção furiosa, mas o poeta agora já superou suas agruras amorosas, e parece estar comentando o Jornal Nacional, ou as contas que se acumulam na caixa de Correio: “Tudo a sua volta está a rodar / se fazem presente o caos e a bonança / você se encontra no olho do furacão / você se meteu numa baita confusão / As horas, os dias, semanas e meses / tudo passa e você ainda aí / sentado esperando o fim do mundo / vendo tudo ruir”. Brilha aqui o baixo de Davi Duarte, o terça parte dos Cadillacs.


Os fãs do The Jam, em especial quem gosta da fase final (o álbum “the gift”) vai subir pelas paredes com a dobradinha “Nos trilhos da montanha” e “Entretenimento e sombra”.A última é um quadro impressionista sobre um dia quente de verão no centro do Rio de Janeiro. O devaneio de um office-boy ansioso pela sexta-feira, quando poderá extravazar suas frustrações num show do Garage. Lembranças da juventude? Mauk tem a energia de um garoto de 15 anos, mas já tem um filho dessa idade. A maturidade se evidencia pela harmônica convivência entre tradição e inovação, pelas letras caprichadas, que versam com inventividade sobre sentimentos e situações que todos conhecemos bem, e pelos arranjos refinados-mas-sem-complicações. Uma proeza de quem, como o vinho, fica melhor à medida que envelhece: “under the influence” do Mike Ness, “Fast man, raider man” do Frank Black e “Ball-hog or tugboat” do Mike Watt são outros exemplos.

“Dicionário Maquiavélico” é, de certa forma, um álbum confessional, de quem já está calejado pela vida. Mas é um álbum de rock´n´roll tradicional, e como tal é uma celebração, e não um lamento. Quando termina o humor do poeta está em curva ascendente, em direção ao sol: “Cartas com a solidão” soa um balanço positivo do calvário underground. “ (Um dos EPs lançados pela Big Trep tinha como chamada a celebração dos “25 anos de anonimato”. Essa estrada não é para os fracos!) Diz assim:  ”Tenho a solidão pra me alegrar / E o que meus olhos vêem a frente / me faz acelerar / Solidão: aperte o passo se quiser me acompanhar”. O trompete contribui para lavar a alma do poeta, varrendo as mágoas para debaixo do tapete. E Mauk sussurra: “Deixa pra lá...”.

Tanto que na derradeira faixa Mauk reencontra o rockabilly. E Eduardo Garcia, do Big Trep, traz seu banjo para uma canção de beira de estrada – ou de marujo?  Uma canção que poderia estar no repertório do Canastra ou do Uisqueletos Estravaganza. A disputa pelo coração da beldade é metaforicamente ilustrada por um duelo ao pôr do sol, num clima faroeste-tarantinesco.

Afinal, o Rock´n´roll é uma fantasia.
E existem poucos contadores de história como Maurício Garcia e seus Cadillacs Malditos.

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ALIÁS...
CURTO CIRCUITO é um esforço conjunto das lojas Satisfaction, Baratos da Ribeiro, Berinjela e Sempre Música.

Uma série de festas, com ingressos distribuídos exclusivamente antecipadamente neste circuito.

No Bar do B, em Laranjeiras (no Mercadinho São José, pertinho do Largo do Machado), com produção executiva da COLLEGE ROCK PARTY.

A primeira edição acontece no dia 26 de setembro de 2014:


#1: HUNGRY HEARTS: UM TRIBUTO AO BRUCE SPRINGSTEEN & THE E STREET BAND

Cortesia da Baratos da Ribeiro, que dá o pontapé inicial no projeto.

eu vou discotecar ao lado do Cláudio Borges, da loja HEADBANGER (Tijuca), outro doido pelo som do Patrão. Vamos tocar rock´n´roll "de raiz", na falta de melhor definição - rock de garagem + soul + country rock + levadas bluesy, tudo bem ianque.

E Maurício Garcia + Robson Riva unirão forças ao Pedro Branco + Pedro Jack (da banda White) para um show só com versões para Bruce:

MAUK & OS CADILLACS MALDITOS + PEDRO WHITE



Uma dose de economia no debate político, já que domingo é dia de Eleição

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Reunião de condomínio é um saco, não? Mas é legal quando se consegue resolver o problema, seja da infiltração ou da vaga de garagem.

É mais ou menos como me sinto com relação à política: é uma chatice, mas não dá pra negligenciar um aspecto tão importante da vida.

É consenso que está tudo muito errado. Todo mundo repete o bordão: os políticos são uns safados, é uma danada duma roubalheira, os serviços públicos são péssimos e quem tira proveito são os cumpadres dos poderosos. Ok. Mas sem exemplos concretos, esses queixumes ficam muito pobres, quase no mesmo patamar que as reclamações quanto ao mau tempo. É, tá chovendo muito pouco... Que pena.

Às vésperas das eleições para o executivo e o legislativo estadual e federal, eu gostaria de botar na roda uns dados que andei compilando nos últimos meses. São dados de artigos publicados nos jornais (principalmente em O Globo – meu vizinho assina, e sempre que termina de ler, ele deixa na minha varanda).

Você notará que a maioria dos temas mais em voga nesta eleição não estão aqui. Não discutirei liberdade religiosa, questões de gênero, aborto ou casamento gay. Tenho dois motivos pra isso. Primeiro: não conheço uma pessoa sequer que, sendo culta e cosmopolita, queira proibir os outros de fazerem essas escolhas, e muito menos queira puni-los. Mesmo meus amigos que são religiosos, e portanto politicamente conservadores, acreditam que cabe às forças divinas esse julgamento, e podem até lamentar certas condutas, mas não ficam pentelhando quem as pratica. 

Quem muito lê e viaja, quem é capaz de debater com elegância e profundidade, quem tem acesso à arte e exercita a imaginação... essas pessoas normalmente convivem com uma grande diversidade de pessoas.  Em quase todas as áreas profissionais, o sucesso exige uma boa dose de tolerância e diálogo, pois significa lidar com a diversidade. Gente bem nutrida, física e intelectualmente, é capaz de enxergar o mundo com mais tonalidade, não apenas em preto e branco.

Segundo: a imensa maioria dos brasileiros é obrigado a lidar com problemas mais prosaicos, quase todos ligados à falta de grana, e nem pode se dar ao luxo de certas escolhas ou julgamentos. Isso vale pra mulher que já tem 4 filhos, e precisa interromper a quinta gravidez, porque não tem como alimentar mais uma criança. E vale também pra senhora beata, que não pode expulsar o filho gay de casa, porque ele é quem ajuda a manter a geladeira cheia. Se esquecer do dono de botequim, que é vascaíno roxo, mas não vai deixar de receber os torcedores do Flamengo em dia de jogo!

Ou seja: nosso grande problema é estarmos fora do Primeiro Mundo, economicamente falando. Ainda somos um país relativamente pobre. Os governos do PT tem um grande mérito na redistribuição de renda, no combate à miséria. Mas pouco foi feito para reposicionar o Brasil na economia global; torná-lo mais produtivo e competitivo. Em certos aspectos, na verdade até andamos para trás.  Essa afirmação pode causar desconfiança, mas realmente acredito nisso: uma população mais rica será necessariamente uma população mais tolerante e liberal – inclusive quanto aos costumes.


Existem algumas outras questões que considero bastante urgentes, como a desmilitarização das polícias e a racionalização dos recursos naturais. Mas não vejo muito o que discutir: a maior parte dos episódios, nesse âmbito, são simples casos criminais. É questão de identificar e punir o PM que mata e a empresa que despesa lixo onde não pode. As polícias (e os bombeiros também) são instituições que conservam abomináveis traços do período recente de ditadura – além outras heranças nefastas, oriundas de sua formação histórica – e provavelmente é mais fácil começar do zero, do que tentar mudar a mentalidade de seus comandantes. (Vale lembrar que o chefe do Comando de Operações Especiais da Polícia Militar do RJ, Cel. Alexandre Fontanelle, foi preso no último dia 16, acusado de chefiar um esquema de extorsão na região de Bangu. Como comandante da COE, ele era o terceiro na hierarquia da PM fluminense.Em 1994, quando o Ministério Público estadual estourou a fortaleza do bicheiro Castor de Andrade, em Bangu, encontraram o nome de TODOS os oficiais do 14º Batalhão, à exceção do comandante, nos livros-caixas onde se registrava o pagamento de propinas. Em 2006, durante a operação Gladiador deflagrada pela Polícia Federal, o então comandante do Batalhão de Bangu, Cel. Celso Noqueira, foi preso por dar proteção ao bicheiro Fernando Ignácio. Naquele mesmo ano foram detidos 76 PMs da unidade, suspeito de venderem armas e munição aos traficantes do bairro.)

E quanto às questões ecológicas, acredito que elas perderam suas tintas ideológicas (apesar dos militantes radicais, cada vez mais esotéricos e irrelevantes)  e foram absorvidas pela ciência, no seu sentido mais amplo. A sociedade se viu forçada a gerir melhor os recursos naturais, nem que seja pelo mais mesquinho dos motivos: continuar usufruindo de conforto material, pelo maior tempo possível. Não é preciso amar os animais ou as florestas para ser um gestor de uma empresa preocupado com reciclagem. Há muito tempo que a reciclagem virou um negócio interessante.

Quanto à corrupção, também é mais caso de polícia do que de política.Tem a ver com falta de transparência e excesso de impunidade. E para avançarmos é preciso que o povo leia mais atentamente jornais melhores, conheça melhor a lei e saiba quais são seus direitos e quais são os instrumentos de cobrança, é preciso um povo que se mobilize mais - como aconteceu no segundo semestre do ano passado. (E por aí o leitor já deve imaginar em qual partido eu vou votar, nessas eleições.) Também é preciso que mais gente da base da pirâmide social, sem rabo-preso, ascenda aos cargos de poder e prestígio (inclusive no Judiciário). E principalmente, é preciso que haja mais possibilidades de ascensão social e enriquecimento na iniciativa privada do que nas carreiras de servidor público! Explicitando o que está nas entrelinhas do que acabo de escrever: desonestidade e ganância são males que sempre afligiram e continuarão afligindo a humanidade, mas a situação vai melhor muito com um setor privado robusto e dinâmico, somado à renovação dos altos quadros estatais por gente não comprometida - por laços de amizade ou familiar – com as velhas oligarquias.

Mas só pra mostrar que não ignoro essa maldita corrupção: a Controladoria Geral da União descobriu que pelo menos 812 pessoas foram beneficiadas por uma fraude no seguro-desemprego, causando prejuízo aos cofres públicos de pelo menos R$ 2,5 milhões, apenas em 2013 (O Globo, 7/9, pág. 27). O problema foi detectado pela primeira vez em 2011, quando o CGU identificou 1.232 servidores públicos que receberam indevidamente o benefício (roubalheira no valor de R$ 108,7 milhões), mas nada foi feito para inibir novas irregularidades.

Enquanto isso, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, os desempregados precisam dormir na fila para conseguir uma das 40 senhas distribuídas diariamente, para dar entrada no pedido de seguro-desemprego. A reportagem do Globo entrevistou a garçonete Helena de Souza, de 38 anos: ele havia chegado às 8 da noite do dia anterior, e era uma das primeiras da fila, 12 horas depois, quando o guichê estava prestes a abrir – as senhas costumam acabar na primeira meia hora. Fazia 3 meses que ela tentava protocolar sua papelada.


E pra quem acha que é preciso o punho do Estado para garantir justiça social, recomendo que olhe para a Suíça: num referendo feito em meados de maio deste ano, 76% dos eleitores disseram não ao piso proposto para o trabalho em 42 horas semanais. A Suíça tem a sexta maior renda per capita do mundo. Lá não existe um piso definido e os salários são decididos por negociação individual ou por convenção coletiva. E apenas 10% da força de trabalho do país ganham menos de 4 mil francos-suíços mensais– ou cerca de R$ 10 mil.


Pois bem, vamos lá:

Finalmente, em 30 de setembro, o Banco Central reviu a previsão de crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro para míseros 0,7%. Sem mexer muito na previsão da inflação, que manteve em 6,3%. Isso significa que na verdade vamos empobrecer 5,6%. É muito simples: a riqueza produzida no país aumentou quase nada, e o preço da comida e do aluguel aumentou! E a gente sabe, pela rapidez com que nossa carteira se esvazia, que essa inflação oficial não condiz com a realidade, muito mais sinistra!

A região metropolitana do Rio de Janeiro tem a inflação mais alta do país: o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), medido pelo IBGE, estava em 7,67% em 9/9. Por aqui comer fora (inevitável numa cidade em que a distância entre trabalho e casa é imensa) ficou 11,44% mais caro - e consome 10% do orçamento familiar, em média.  Nesse período de 12 meses os aluguéis aumentaram 13,88%.Segundo Darcílio Junqueira, superintendente do Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), a Copa do Mundo frustrou as expectativas: “Está sendo um ano difícil. A Copa foi boa só para bares de uma certa região da cidade. Excetuando a Avenida Atlântica, Ipanema e Tijuca, no geral tivemos perdas” (Globo, 9/9, pág. 23)

(Uma curiosa reportagem de 30/8 – na pág. 15 - mostrou como o cinto está apertado, mostrando a mudança no horário de funcionamento dos bares e restaurantes cariocas, durante a semana. O Lamas fechava às 4h e agora encerra às 2:30h. O Capela, na Lapa, fez o mesmo. O Diagonal, no Leblon, prejudicado também pelas obras do metrô, ia até às 5h e agora fecha às 2h, quando muito. O Chico & Alaíde tentou esticar até 2h, mas não conseguiu pescar movimento para depois da meia-noite. Nem a Lapa escapa: o Boteco da Garrafa, na madrugada daquela quinta-feira, mandou a conta para as mesas às 1:30h.)

No dia 29 a pesquisa Focus, feira pelo BC, mostrou que os analistas do mercado financeiro cortaram pela 18ª semana consecutiva as previsões para o PIB, de 0,3% para 0,29%. Caso qualquer uma dessas previsões se confirme, seja a do governo ou a do mercado, será o pior resultado desde 2009, auge da crise financeira mundial, quando a economia brasileira encolheu 0,3%.


O varejo brasileiro teve o pior desempenho dos últimos 6 anos,segundo pesquisa do IBGE que saiu no dia 11/9. As vendas do comércio não crescem desde o Carnaval e na comparação com julho de 2013 houve um recuo de 0,9%. A coordenadora da pesquisa, Juliana Vasconcelos, disse ao jornal O Dia que “(julho) teve menos dias úteis por conta da Copa do Mundo, e a inflação ainda contribui”. Se deram mal até os setores que deveriam ter se beneficiado com os churrascos que os brasileiros fizeram para acompanhar os jogos: supermercados e outras lojas que vendem bebidas, produtos alimentícios e fumo tiveram queda de 1,3% em julho.

Durante a Copa do Mundo, os turistas estrangeiros trouxeram US$ 850 milhões para o Brasil, segundo o Banco Central. Já os brasileiros que foram passear na gringa levaram US$ 2,4 bilhões embora daqui. Foi o maior gasto dos brasileiros no estrangeiro desde que o BC começou a levantar esses dados, em 1947. Segundo Sergio Vale, economista da MB Associados: “Muita gente deve ter aproveitado o período da Copa para tirar férias fora daqui, com receio de manifestações e já sabendo que a economia ficaria parada.”

A FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo) estima que cada feriado extra representa uma perda de R$ 7,27 bilhões para a produção. Para o comércio varejista, os economistas calculam uma queda de 9,2% dos lucros para cada feriado. E em São Paulo, que tem um movimento constante e pujante de turismo de negócios, o movimento caiu 60%. (Dados de reportagem do jornal Destak de 14/7.)

Quem ainda aplaude a política de mega eventos do governo carioca / fluminense precisa abrir os olhos. E vem mais prejuízo pela frente: uma das mais rentáveis feiras de negócios do país era a Rio Oil & Gas, que traz 42 mil turistas (a maioria de classe AA) e estava prevista para acontecer em 2016. Vai rolar, mas não mais no Rio de Janeiro,  porque o Riocentro está reservado de maio a dezembro para as Olimpíadas. Alfredo Lopes, do Rio Convention & Visitors Bureau, em depoimento à Cleo Guimarães (12/9, pág. 5 do Segundo Caderno) alertou: “As feiras que foram para São Paulo não voltaram mais”.

Por conseqüência, caiu também a arrecadação: R$ 10,541 bilhões em relação ao mesmo período do ano anterior.

Curioso é que o governo incentiva o calote, pelo menos aos olhos de quem tem grana pra pagar bons advogados. A Azul devia cerca de R$ 300 milhões ao Departamento de Controle do Espaço Aéreo. Chegaram a um acordo: a companhia aérea matou a dívida sacando a barganha de R$ 14 milhões (coluna do Ancelmo Gois, 29/8). Agora, se você é um pobre-coitado dum cidadão comum.... A Dívida Ativa da Prefeitura do Rio vai protestar os débitos dos contribuintes. Para evitar o nome sujo, os 600 mil devedores notificados inicialmente terão que quitar o valor integral da dívida em até 72 horas (mesma coluna, 12/9).

O que fez o governo diante da receita mais magra? Decidiu manter a projeção de superávit primário (grana reservada para o pagamento de juros) em R$ 99 milhões (1,9% do PIB), sacou R$ 3,5 bi do Fundo Soberano (uma caixinha para ser usada em momentos de crise, criada em 2008)  e cortou as despesas obrigatórias(previdência, encargos sociais, folha de pagamento e auxílio CDE) em R$ 7,41 bilhões. Quase metade desse corte deu-se em subsídios, subvenções e Proagro: R$ 3,061 bilhões.

AGORA PENSE NESSE DADO À LUZ DE UM FATO: A ATIVIDADE INDUSTRIAL BRASILEIRA ESTÁ MINGUANDO.

A produção industrial brasileira encolheu 2,6%, comparando-se o primeiro semestre de 2014 com o mesmo período de 2013, segundo reportagem de 2 de agosto (O Globo, página 25). Dos 26 ramos pesquisados pelo IBGE, 21 reduziram sua produção. “Mais do que o perfil disseminado de taxas negativas, no entando, há preocupação com os investimentos: a produção de bens de capital teve perda de 9,7% frente a maio e 21,1% na comparação com junho de 2013, esta última a mais intensa desde agosto de 2009 (-22,4%). No segundo trimestre a queda foi de 15% frente a igual período do ano passado. A produção de bens duráveis também se destacou e registrou o maior tombo da série histórica, de 24,9% frente a maio. Em relação a junho de 2013 o recuo foi de 34,3%, o mais intenso desde dezembro de 2008, em plena crise mundial.”

Apesar do grande peso da indústria automobilística nesses números, as perspectivas são ainda mais pessimistas para o setor de vestuário.De acordo com Roberto Chadad, presidente da Abravest (Associação Brasileira da Indústria do Vestuário), a falta de política industrial de longo prazo está acabando com as confecções brasileiras: “Está cada vez mais vantajoso produzir na Ásia. Um dia, não muito longe, não teremos mais produção de roupas no Brasil. Tudo virá do Oriente”. Eu, particularmente, acho que devemos mesmo nos livrar dos carros particulares, e nos reeducar para usarmos o transporte público – pelo menos nós, que vivemos em grandes cidades. Mas nós, enquanto país, perdermos a capacidade de produzirmos nossas próprias roupas, isso é absolutamente trágico.

Mas nada me assustou mais do que a reportagem de 21/7, capa do caderno de Economia: algumas empresas estão caminhando a passos tããão lentos, produzindo tão pouco, que preferiram vender energia elétrica no mercado, ao invés de usá-la na sua atividade fim.São indústrias que possuem usinas próprias de energia, e estão vendendo esse insumo. Empresas de mineração, siderurgia, papel e celulose e petroquímica, entre outras. Apenas as 12 maiores operações de liquidação de energia realizadas em maio renderam R$ 289,42 milhões, segundo planilha da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), responsável pelo fechamento desse tipo de operação.

Existem também situações em que as empresas compraram energia anos atrás, por um preço baixo, e viram na alta atual uma possibilidade irresistível de ganho – a diferença pode chegar a 7 vezes, em alguns casos. Isso pode aliviar o leitor. O mercado livre é usado por empresas que respondem por cerca de 60% da produção industrial brasileira. Elas fecham contratos de médio e longo prazo para a energia que usarão em sua produção, e no caso de não usarem tudo, “devolvem” a energia excedente para o sistema, recebendo o pagamento pela tarifa no mercado á vista. Mas preste atenção ao comentário de Rodolfo Baltazar, diretor da Bolt Comercializadora: “Essas empresas estão enfrentando uma redução da sua atividade econômica. Para elas, a liquidação de seus contratos [de energia] é uma conseqüência conjuntural. Não é para ganhar com a venda de energia, é porque elas não têm para quem vender seus produtos.

Os empregos formais tiveram o pior julho desde 1999, segundo pesquisa do IBGE divulgada em 21 de agosto. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, foram criadas apenas 11.796 empregos formais em julho. Queda de 71,5% em relação à julho de 2013. (A indústria de transformação fechou mais vagas do que abriu, nesse período: 15.392 empregos desapareceram.) No acumulado entre janeiro e julho, o saldo também é negativo: redução de 30% ante o mesmo período do ano passado. Em entrevista, o ministro do Trabalho, Manoel Dias, disse estar otimista porque esse é “o fundo do poço”, portanto o futuro só pode ser de melhora. Que senso de humor, hein?

Já o setor publicitário está sorrindo de orelha á orelha. O custo de todas as campanhas durante essas eleições está estimado em R$ 72 bilhões, correspondente a mais do que o dobro do gasto prometido para a Copa, incluindo obras de mobilidade urbana, aeroportos, estádios, turismo e segurança pública. Desde 1965 a lei eleitoral prevê a possibilidade de o Legislativo fixar tetos para as campanhas, o que nunca aconteceu. (Dados da coluna de Gil Castelo Branco, economista e fundador da ONG Contas Abertas, publicada em 19/8.) Já um levantamento publicado em 16 de julho mostra a discrepância entre o custo das campanhas para governador e o Índice de Desenvolvimento dos estados brasileiros: Alagoas, o 3º pior IDH do país, terá a 3ª campanha mais cara para o executivo estadual, tanto em termos absolutos quanto em termos proporcionais ao eleitorado. Mas o estado campeão, em gastos na campanha, é Roraima! Onde os gastos por eleitor bate os 90 reais por cabeça.O Ceará terá a quarta campanha mais cara em números absolutos – apenas Camilo Santana, o candidato do PT, declarou à Justiça Eleitoral que pretende investir 64 milhões de reais na tentativa de conquistar o cargo.

Esse tal Camilo Santana é deputado estadual (foi o mais votado do Ceará em 2010), e está afastado de suas funções para disputar o cargo de governador. Mas mesmo quem não está concorrendo fica ocupado com a campanha de seus aliados e afilhados políticos. O Congresso Nacional, em Brasília, está vazio.E o resultado é que haverão apenas 4 sessões durante os meses de campanha. E sabe quanto custa o funcionamento do Congresso? R$ 24 milhões por dia, ou R$ 9 bilhões por ano, segundo o site Contas Abertas. Já nos EUA, se a Câmara não puder funcionar por mais do que 3 dias, tem que pedir anuência do Senado – e vice-versa. É preciso votar uma resolução conjunta autorizando a suspensão das atividades por aquele período.

Aliás: em jullho a Nissan entregou 65 novos carros para a Assembléia Legislativa do RJ.  São do modelo Sentra 2.0, e a nova frota custou R$ 4,1 milhões. É que os Boras usados anteriormente eram muito velhos: foram comprados em 2009. A Presidência da República também andou indo às compras: 120 porta-guardanapos de prata, 5 vasos para arranjos de flores e 10 baldes de gelo. São para o Palácio da Alvorada e para a Granja do Torto, e custaram R$ 25 mil. (Dados da coluna do Ancelmo Gois)

Em tempo: a carga tributária brasileira é de 38% do PIB.(Antes da eleição de Fernando Henrique Cardoso, a carga era de 29,46%, e com os tucanos ela chegou a 32,47%. O restante da ladeira nós subimos graças aos petistas no volante.)

Poderia ser até de 48,2%, como na Dinamarca, se tivéssemos escolas e hospitais públicos como os dinamarqueses! Enquanto dinamarqueses, suecos e belgas (todos dando acima de 43% da sua renda para o Estado) não precisam esquentar a cabeça com segurança, educação e saúde, e desfrutam de metrôs maravilhosos, praças lindas e limpíssimas e ágeis repartições públicas, nós, brasileiros, temos que nos virar do avesso para pagar escola particular e plano de saúde, e torcer para não ter que depender da polícia.

Como poderia ser diferente, se nem os nossos governantes confiam nos serviços públicos? Não usam o transporte público, o SUS ou matriculam seus filhos nas escolas públicas? Em setembro o Tribunal de Justiça do RJ decidiu dar uma bolsa de até R$ 7.250,00 para financiar os estudos de filhos e dependentes de juízes e desembargadores. Aprovado, isso significaria um impacto de R$ 38,773 milhões nos cofres públicos, apenas este ano! A maioria dos magistrados recebe cerca de R$ 30 mil mensais brutos de vencimentos. O TJ pretende ainda estender o benefício aos seus servidores, no valor máximo de R$ 3 mil – o que resultará num gasto de R$ 128,877 milhões em 2015.

E a taxa de investimento do governo brasileiro? Em constante queda, está agora em 17,7%.

Pode-se escolher qualquer promessa, para qualquer setor, que a decepção é garantida. Em 2010 o governo anunciou um plano, elaborado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para instalar até o fim de 2014 placa solar para chuveiros em 2 milhões de casas do Minha Casa Minha Vida. Até 12 de maio, segundo reportagem do Globo (pág. 15), apenas 15.945 residências contavam com o sistema, ou 10,8% da meta.

Reportagem de 23/9 sobre a navegação fluvial no Brasil, um dos país do mundo mais vocacionados para o uso desse tipo de transporte:

Excetuando o Rio Amazonas, as hidrovias brasileiras quase não são usadas. Nem mesmo os custos menores de transporte nos rios e a maior facilidade para integração com o modal marítimo ajudam o setor, que sofre com uma falta crônica de infraestrutura e descaso público. (...) Da mesma forma que a cabotagem é uma vocação natural do Brasil — que tem oito mil quilômetros de costa — a grande quantidade de rios navegáveis deveria ser uma vantagem comparativa, assim como o Rio Mississippi nos EUA ou os grandes rios da Europa.

No Brasil, não há, sequer dados estatísticos sobre o uso das hidrovias, que é indicada por especialistas como o principal meio para ligar a nova fronteira do agronegócio, no Centro-Oeste, ao litoral. Mesmo antigas rotas, como o Rio São Francisco, pararam de ser usadas em razão do avançado estágio de degradação do rio. Rotas pequenas e com demanda forte, como Rio Grande-Lagoa dos Patos- Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, praticamente não são usadas. (....)

— Todos os governos têm sua parcela de culpa. Até hoje o Brasil desconhece quais rios são viáveis, não há um mapeamento deles como há na costa. Com isso o Brasil perde oportunidades gigantescas — afirma o advogado e especialista no assunto José Mário da Silva, associado do Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

Ele lembra que, com alguns canais, seria possível criar uma hidrovia ligando a Bacia Amazônica ao Rio do Prata, criando um corredor entre rios de Belém a Buenos Aires. Segundo Silva, as poucas iniciativas do setor estão abandonadas:

— O governo gastou quase R$ 1 bilhão para construir eclusas em Tucuruí, no Rio Tocantins, mas elas só podem ser usadas durante menos de seis meses por ano, pois falta o derrocamento (espécie de dragagem) de um trecho do rio. A hidrovia está incompleta — disse ele, lembrando que o governo insiste em construir novas hidrelétricas sem eclusas, comprovando que o setor não é prioritário. (...) A falta de rotas é a segunda maior reclamação das empresas para não usar a cabotagem, aponta pesquisa inédita feita com 120 grandes companhias pelo Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos).

— Das 120 empresas que entrevistamos, 45% utilizam a cabotagem, porém outros 40% já usaram ou tentaram utilizar a cabotagem, sem sucesso— conta Monica Barros, gerente da área de Inteligência de Mercado do instituto e responsável pela pesquisa.
A pesquisa indica que, entre as empresas que utilizam a cabotagem, 66% reclamam da falta de infraestrutura portuária, 63% da burocracia e 62% do elevado tempo de trânsito das mercadorias. Já entre as empresas que desistiram ou tentaram a cabotagem, 43% reclamam da falta de integração entre os modais de transporte, 39% da falta de rotas de cabotagem e também da falta de infraestrutura portuária.”


O governo anda maquiando suas contas, tentando esconder a verdadeira situação das contas públicas.Matéria de 23/8: “O Tesouro está recorrendo, mais uma vez, à contabilidade criativa para fechar as contas do segundo quadrimestre e assegurar a meta de superávit prometida até agosto, de R$ 39 bilhões. Diante da frustração com a arrecadação, um conjunto de despesas vem sendo represado para melhorar de forma artificial o resultado, incluindo subsídios e repasses a bancos públicos para o pagamento de benefícios sociais. (...) Um dos artifícios, que é a retenção dos repasses à Caixa para o pagamento do Bolsa Família e outros benefícios como seguro-desemprego e abono salarial, está sendo investigada pelo Ministério Público  junto ao Tribunal de Contas da União e levou o Banco Central a fazer uma consulta à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre a natureza dessas operações — bem como se elas ferem a Lei de Responsabilidade Fiscal. (...) Foram encaminhados ofícios ao Tesouro e ao Banco Central (BC) para que informem a data do pagamento dos benefícios e dos repasses do Tesouro à Caixa, desde 2012, para que o Tribunal avalie se essas movimentações podem ser caracterizadas como operações de crédito, já que, quando há atraso nos repasses, a Caixa paga os benefícios com recursos próprios. (...) No início de agosto, a dívida do Tesouro com o Fundo de Amparo ao Trabalhador, que paga essas despesas e é operado pela Caixa, era de R$ 2,5 bilhões.”


(Sobre o Fundo de Amparo ao Trabalhador, importante citar outra matéria: este ano o governo suspendeu a tradicional campanha de incentivo ao saque do PIS,contando com a volta desses recursos ao caixa do Tesouro, reforçando assim o superávit primário. Até o dia 6, data da reportagem, 1 milhão de trabalhadores ainda não haviam sacado o abono salarial a que tinham direito. Ficou sem quem não sacou a bufunfa até o dia 30. Ao mesmo tempo, o governo usou R$ 8,1 milhões do FAT para custear uma campanha publicitária de “Trabalho decente na Copa”, sem o aval do Conselho Deliberativo do FAT – Codefat -, que por lei deve aprovar esse tipo de despesa. O patrimônio do FAT soma R$ 204,7 bilhões, e 75% desses recursos estão emprestados ao BNDES para financiar projetos de infra-estrutura remunerados pela Taxa de Juros de Longo Prazo – congelada em 5% ao ano.)


Voltando à matéria de 23/8: “Especialistas em Orçamento apontam como outro sinal de que o Tesouro vem segurando repasses o fato de os desembolsos com subsídios e subvenções terem caído substancialmente entre janeiro e junho de 2014, em comparação ao mesmo período do ano passado. Em 2013, o total com essa despesa no primeiro semestre foi de R$ 6,22 bilhões, e neste ano é de R$ 4,96 bilhões. Somente com o Pronaf, programa voltado para agricultura familiar e operado pelo Banco do Brasil, o valor caiu de R$ 1,734 bilhão no ano passado para R$ 476,5 milhões em 2014.


Além disso, o Tesouro Nacional trocou uma parte da sua dívida, por outra com maior prazo, porém mais cara. Em 23 de julho ofereceu no mercado financeiro internacional títulos com vencimento em 30 anos (batizaram de Global 2045), captando assim US$ 3,5 bilhões – dos quais 2 bilhões foram pagos com títulos antigos do próprio Tesouro brasileiro. A diferença entre os juros pagos pelo novo título brasileiro e a taxa oferecida pelos títulos norte-americanos (uma referência mundial) foi a maior desde o auge da crise financeira mundial, em 2009 – 1,875 ponto percentual a mais. Em março captou 1 bilhão de euros no mercado internacional oferecendo títulos com vencimento em 2021 (com juros de 2,96% ao ano). (Matéria de 24/7, pág. 24.)

A esquerda quer um Estado forte, capaz de dar assistência em especial à população mais desfavorecida, que redistribua renda e crie oportunidades de ascensão econômica e sociais à turma de baixo da pirâmide. Lindo.

E toda vez que alguém acusa esse ou aquele governo de estar “aparelhando” o Estado, esse alguém é acusado de ser um direitista sedento por privatização geral e irrestrita. Um simplismo boboca, que impede muitos esquerdistas de enxergarem a maneira safada como o PT anda usando instituições públicas para fugir de problemas sérios, usando manobras que terminarão por agravar a situação. (E outros partidas já usaram, e ainda usam, esse expediente. Não se trata de uma invenção petista.)

Uma das moedas de barganha mais poderosas do governo federal são os cargos nos conselhos das empresas estatais. Alianças entre partidos são negociadas com base na pilhagem desses empregos fantásticos. O Conselho de Administração da Itaipu Binacional é o que melhor paga: R$ 20.804,03 mensais a cada membro. Orlando Pessuti, ex-governador do Paraná, conseguiu um lugar à sombra da Hidrelétrica como parte do acordo firmado entre seu PMDB e o PT em 2010, por ocasião das alianças que turbinou a candidatura de Dilma Rousseff à presidência. Ao pedir afastamento para concorrer novamente à governador do Paraná, Orlando pai passou o cargo para seu flho, Orlando Moisés Fischer Pessuti, de 32 anos. Bem ao modo das capitanias hereditárias. No início de maio a Petrobrás anunciou queda de 30% no lucro do primeiro trimestre com relação ao mesmo período do ano anterior, mas o jetom (nome da remuneração pagas aos conselheiros) subiu 13% no mesmo período, chegando a R$ 10.253,07 mensais. Os ministros da Fazenda, Guido Mantega, e do Planejamento, Miriam Belchior, estão nesse barco. Como ambos também integram o conselho da BR Distribuidora, cada um passou a receber R$ 18.297,95 em jetons todo mês! Em março o total de jetons distribuídos pelo governo foi de R$ 1,78 milhão – aumento de 19% em relação à março de 2013. O conselho do BNDES custou R$ 179,6 mil em março e pelo do Banco do Brasil escorreram 172,2 mil naquele mês.

Miriam Leitão alertou, em sua coluna de 24 de julho: “Os bancos que estão concedendo o novo empréstimo às distribuidoras [de energia elétrica] estão convencidos de duas coisas: primeiro, que as empresas não vão quebrar porque o governo vai salvá-las custe o que custar; segundo, que esse não é um empréstimo de apenas um ano. Há uma grande chance de o valor ser rolado por dois ou três anos. Estão sendo empurrados pelo governo a assumir esse risco. A conta ficou tão alta que, qualquer que seja o resultado da eleição, será difícil repassar tudo para a conta do consumidor e das empresas em 2015. A presidente Dilma, se for reeleita, terá ainda mais dificuldade de aprovar o aumento na conta de luz que permita o pagamento dos empréstimos. Eles ficaram altos demais. Chegam agora ao gigantesco valor de R$ 17,7 bilhões.

(...) O BNDES também não gostaria de ter entrado na operação. Isso explica a declaração de Luciano Coutinho em Londres de que “se ela (a operação) for feita não será com funding do Tesouro nem com TJLP, mas sim nas mesmas condições dos bancos privados”. Se o BNDES fosse dar esses recursos com dinheiro do Tesouro e cobrando a TJLP, estaria, na verdade, fazendo mais uma alquimia. O Tesouro está empurrando os bancos para emprestar e a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) para se endividar porque é a forma de evitar o impacto desse gasto nas combalidas contas do superávit primário. Se fosse feito com dinheiro do Tesouro via BNDES, ficaria evidente o truque. O BNDES acaba de receber recursos do Tesouro, teria que pedir mais algum.

Fontes que acompanham as negociações informam que o BNDES ainda não encontrou a forma de concessão desse empréstimo que se encaixe em seu estatuto. Não chega a ser empréstimo de capital de giro porque o prazo é longo. (...) A dúvida que eu tinha é que no mercado se diz que para enquadrar a operação seria necessário alterar o estatuto. Tomara que não se chegue a tal disparate.

Em tempo: esses empréstimos já garantem um aumento de pelo menos 24% na conta de luz da sua e da minha casa, para 2015.

Mas além da “contabilidade criativa”, manobras não exatamente ilegais, mas “safadinhas”, está rolando a pura e simples desonestidade, na forma da omissão de certos dados. Através de conversas com técnicos da Câmara dos Deputados, a imprensa apurou ainda que pelo menos R$ 2,4 bilhões em despesas ainda para este ano foram omitidas em relatórios do governo.

E não falta a pura, simples e desavergonhada “conversa pra boi dormir”. Conforme Elio Gaspari expôs na sua coluna de 20/6: “na conta de padeiro apresentada pela presidente Dilma, a incompetência adveio de indisfarçável e mal-intencionada manipulação marqueteira. A opção relevante era entre construir estádios, de um lado, e escolas, hospitais e postos de saúde, do outro. Mas em vez de comparar os supostos R$ 8 bilhões que foram gastos nos estádios da Copa com despesas de investimento em educação e saúde, a presidente permitiu-se compará-los com despesas totais dos três níveis de governo com educação e saúde de 2010 a 2013. Despesas da ordem de R$ 1,7 trilhão, que, além de investimentos em educação e saúde, incluem, por exemplo, toda a folha de pagamento do funcionalismo ligado à educação e à saúde nas três esferas de governo. A conta que faz sentido é a que foi feita por Gil Castello Branco (O Globo, 17/6): o custo dos estádios equivale a dois anos de investimentos federais em Saúde ou à instalação de 2.263 escolas."


Elio Gaspari é implacável quando se trata de denunciar os contos do vigário (coluna de 27/7): “No final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal esteve prestes a julgar o litígio dos poupadores das cadernetas de poupança que se sentiram lesados com a correção monetária de seus depósitos durante os planos econômicos fracassados do fim do século passado. Com o apoio do Banco Central, a banca desencadeou uma operação de terrorismo político-financeiro, argumentando que se os depositantes prevalecessem, provocariam um desastre bíblico na economia nacional. Seriam R$ 150 bilhões, talvez R$ 180 bilhões, quem sabe, R$ 441 bilhões. Uma empresa de consultoria falou em R$ 600 bilhões. Um manifesto assinado por Guido Mantega e cinco ex-ministros da Fazenda, inclusive aqueles que ajudaram a produzir a ruína da hiperinflação, foram na mesma linha.(...)O Instituto de Defesa do Consumidor sustentava que isso era um exagero e argumentava que esses mesmos bancos haviam provisionado apenas R$ 11 bilhões. Na conta do Credit Suisse o litígio custaria R$ 26,5 bilhões. A Procuradoria Geral da República informou que as contas catastrofistas estavam erradas. A cifra certa, para a PGR, está em R$ 21,9 bilhões.


A FALTA D´ÁGUA EM SÃO PAULO RESULTA DE UMA VELHA E TERRÍVEL PRÁTICA: empurrar com a barriga um problema sério, fugindo de medidas impopulares (campanha educacional para uso mais racional dos recursos, na melhor hipótese, e racionamento, na pior), para preservar a imagem do atual governo (deixando a batata-quente para o próximo).

Reportagem de 30/9 mostra em pé estamos: “ Enquanto o governo de São Paulo se prepara para utilizar o segundo volume morto do sistema Cantareira para abastecer a Região Metropolitana, uma nova paisagem surge onde, há um ano, só havia água. Alguns dos principais rios e represas do estado deram lugar a vegetação alta e pasto para animais. Moradores de cidades do interior temem que a mudança repentina, resultado da pior seca das últimas oito décadas, seja um sinal de que os reservatórios não voltarão a encher como antes.


Não há mais água passando pelo leito do Rio Jacareí, onde, há um ano e meio, jovens mergulhavam a partir da ponte da Rodovia Pedro I, entre Piracaia e Joanópolis. No local, crescem grama, arbustos e plantas de até um metro de altura. Alguns quilômetros adiante, a represa Jaguari parece um pequeno lago no meio de um imenso campo. Cheios, os dois reservatórios ocupam uma área de 50 mil quilômetros quadrados e são responsáveis por cerca de 75% de todo o Cantareira.


Ontem, o sistema atingiu 7% de sua capacidade. O índice só é positivo porque, desde junho, bombas instaladas pelo governo sugam o que restou do chamado volume morto, uma quantidade de água que ficou abaixo dos encanamentos originais que puxavam a água da represa Jaguari. Caso a quantidade de chuvas não mude, essa reserva técnica deve acabar em 21 de novembro, segundo o secretário de Recursos Hídricos, Mauro Arce.


Um dos braços do reservatório, o conhecido ponto de pesca chamado Mangue Seco, foi sumindo aos poucos desde o início do ano. Ontem, bois e cavalos pastavam onde os barcos de pescadores costumavam ficar.”

Miriam Leitão, sobre a crise energética (coluna de 3/9): “A crise é gigante e vai além da falta d´água nos reservatórios. A má administração provocou uma onda de dívidas cruzadas entre as empresas elétricas e chegou ao absurdo em alguns fatos, como a concessionária Santo António dever ao consórcio Santo António e por isso a usina começou a demitir. Parece piada, mas é isso mesmo. Consórcio e concessionária, com os mesmos sócios, brigam por pagamento não feito.

# # #

Passei o dia inteiro pesquisando e escrevendo, e não esgotei minha pasta de recortes de jornais com dados que julgo interessantes para quem quer pensar a situação política e econômica brasileira.

Decidi que ia até onde agüentasse, e confesso que estou nas últimas.

Espero tê-lo ajudado a escolher seu candidato neste domingo. Ou, pelo menos, espero tê-lo instigado a acompanhar mais de perto o noticiário político e econômico.

Ademais, abrigado pelo fôlego! Chegar até este ponto do texto não foi fácil, eu sei.

Um abraço,

Maurício Gouveia

P.S.1:
No dia 10 de setembro o jornal “El Impulso”, o mais antigo da Venezuela, fundado há 110 anos, anunciou que sairia de circulação na semana seguinte. Por falta de papel-jornal para ser impresso. Um dia antes o presidente Nicolás Maduro anunciou a criação de mais duas publicações oficiais: “Diario Del PSUV” e o semanal “Los Mazazos”. Ué: há papel para ser comprado na Venezuela ou não? Será que El Impulso andava muito mal das pernas, e não conseguia mais comprar insumos? Não, é que na Venezuela a venda de papel-jornal é regulada pelo governo, que decide quem pode, ou não, comprar.

P.S.2:
De acordo com a edição 2014 do tradicional levantamento anual do Boston Consulting Group sobre a evolução da riqueza no mundo, o total de ativos financeiros em poder de famílias alcançou o volume recorde de US$ 152 trilhões em 2013. Uma expansão de 15% com relação à 2012. Desde a crise de 2008, a riqueza financeira privada acumulada saltou 60% - média anual superior a 8% -, ao passo que o PIB global evoluiu, no mesmo período em ritmo médio inferior a 3% anuais. E 3 de cada 4 dólares adicionados ao estoque de riquezas privadas, no ano passado, vieram com a rentabilidade obtida com ativos anteriormente acumulados – com grande destaque para o mercado de ações, que tiveram taxas de crescimentos superiores a 20%. (Artigo de José Paulo Kupfer publicado em 13/6.)

P.S.3:
Segundo estudo publicado na revista Science em 18/9 há 70% de chances de que a população mundial alcance, em 2100, um patamar entre 10 e 12 bilhões.A grande novidade do estudo é que, ao contrário da aposta feita por pesquisas anteriores, essa acredita que não haverá curva descendente, graças à alta natalidade na África. E que pode se tornar uma tendência em outras regiões, à medida em que o fundamentalismo religioso (especialmente islâmico) ganha força.

A previsão é que a Nigéria se torne em 2100 o terceiro país mais populoso do planeta. Apesar da epidemia de Ebola ter sido pior em países vizinhos,  a Organização Mundial da Saúde reportou 20 casos e oito mortes por lá. Cerca de 900 pessoas que tiveram contato com os doentes foram identificadas e estão em acompanhamento médico. No início de outubro se esperava decretar o problema superado. Apenas para sugerir, mais uma vez, que você reflita sobre a o peso da economia na agenda política. Todo mundo tem problemas, mas os problemas da pobreza são bem mais assustadores.


“Deixa Comigo”, Mario Levrero (fragmento)

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Mote do Desafio para o encontro do dia 24 de fevereiro de 2015 do Clube da Leitura.

“Deixa Comigo”, Mario Levrero (Rocco, 2013, tradução de Joca Reiners Terron)

FRAGMENTO:

Como naquela cidade nada fica a mais de cinco minutos de carro, foi fácil, com um táxi, encontrar-me diante da senhora, ou senhorita Schloss, ou Blitz, exatamente às cinco  e meia. Esperava não ser considerado informal demais por estar sem paletó e com as mangas da camisa dobradas acima do cotovelo, porém tinha resolvido deixar o paletó. O clima estava cada vez mais quente.

Ela era uma doce velhinha coquete. Tinha cabelos grisalhos e olhar bondoso. Usava o cabelo cuidadosamente repartido em duas metades, preso atrás num coque. Para minha surpresa não vestia roupas negras ; usava uma blusa branca e uma saia florida. Precisava de óculos, mas não os colocara. Recebeu-me com grande amabilidade e me fez sentar numa cadeira, introduzida no país por Hernandarias junto com o gado, e me ofereceu com copo de chá. Recusei com firmeza.

“Não, senhorita Shnagg; não se preocupe. Tomei muito café”, respondi.

Já havia resolvido, mal a vi, recusar qualquer bebida; essas velhinhas tão angelicais costumam ter arsênico no armarinho do banheiro.

“Uma tacinha de licor?”, insistiu.

“Nada, muito obrigado”, respondi; e notei que se chateava. Isso não convinha aos meus fins; pareceu-me oportuno lhe explicar que jamais pudera provar álcool porque tinha sofrido na própria carne a desgraça de ter um dipsômano na família, meu próprio pai”, estava dizendo, mas a vi se entristecer demasiado, fiz um gesto de indiferença. “Você sabe como são essas coisas. Em todo caso, aceitaria um copo d´água”.

Na água eu poderia detectar qualquer sabor estranho.

Saiu, e voltou em seguida com um copo longo sobre um pratinho. Sentou-se diante de mim, toda ouvidos, e fui lhe contando sobre minha investigação detalhadamente, incluindo a eventualidade de que Juan Pérez talvez fosse um pseudônimo, uma mulher ainda por cima. Ela poderia relembrar a década de sessenta?

Era uma mulher inteligente e sensível, e provavelmente não teria muitas ocasiões de falar com alguém que a escutasse e a compreendesse. Falou e falou, remontando aos anos sessenta, cinqüenta, quarenta. Um estado similar ao coma me invadiu, e tentei sair dele fazendo um inventário da sala sobrecarregada de objetos; o maior era um piano, o menor uma formiga que percorria meu braço. Eu a olhava fascinado, esperando que me picasse, sem forças para sacudi-la.

Navegava num pedalinho por um lago sereno como um prato de sopa. Alguém tocava mandolina, e lá no céu deslizavam lentamente, muito lentamente, nuvens brancas feito algodão. Nunca soube como apareceram o pigmeu e as luvas feitas de borracha. Fazia silêncio. A senhorita Screem tinha lágrimas nos olhos. Eu também, apesar de que certamente não pelos mesmos motivos.

“Eram outros tempos”, falei com simpatia, afogando um bocejo. Dissimuladamente, olhei a hora. Seis e quarenta e cinco.

Levantei de um salto.

“Posso voltar a incomodá-la amanhã?”, perguntei, pois não recolhera nada útil aos meus fins. “Você me fez perder a noção do tempo”.

Sugeri que ela desse conferências, para que os jovens de hoje, corrompidos pela droga e pelo sexo, alcançassem uma luz de esperança. Valores, senhorita Schloss, estamos perdendo valores. Porém não podia ficar um pouco mais; esperavam-me no canal fazia quinze minutos, para gravar uma entrevista, e não queria deixar de atendê-los. Tomei suas mãos e as sacudi ternamente. Ela sorriu, encantada.

“Espero-o amanhã, jovem. Na mesma hora”, falou comovida.

(...)

Continuei chorando até que recordei subitamente do encontro. Já estava ficando tarde. Corri até o banheiro para lavar a cara e os olhos e assoar o nariz com papel higiênico., e quando vi no espelho os olhos avermelhados e o nariz inchado me deu um ataque de riso, mas sério. Evidentemente necessitava descarregar a histeria.

(...)

Tomei um táxi e cheguei às seis, meia hora atrasado.

Não me tratou severamente, porém sua preocupação era evidente. Pedi desculpas; o calor e o cansaço tinham me feito dormir em excesso. Enquanto eu estava sentado, ela me trouxe o copo d´água, como se fosse um rito instaurado séculos atrás. Sentou-se, olhou para mim com serenidade nos olhos, e sentenciou:

“Você esteve chorando”.

Temi que começasse outra vez a risada histérica. Torci a boca e confessei que, com efeito, estivera chorando.

“Minha esposa me abandonou faz uns meses”, disse, tentando sentir uma profunda autocompaixão. “Fugiu com um traficante búlgaro para a Venezuela. Às vezes sinto saudades dela”.

Duas lágrimas umedeceram minhas bochechas. Os fatos essenciais estavam corretos, mas os enfeitara um pouco; as pessoas gostam de detalhes exóticos. O homem não era traficante, mas químico; não era búlgaro, apenas vulgar; não vivia em Venezuela, mas em Montevidéu. Tampouco minha mulher me abandonara exatamente, nem fugira; foi uma separação longamente discutida, e em comum acordo.

A anciã começou a falar suavemente generalidades e máximas cujos objetivos eram dissipar minha angústia, e depois foi resvalando para velhos temas, baixando da década de quarenta até a de trinta, e dali à de vinte. Fez em mim uma lavagem cerebral completa, e depois funilaria e pintura. Fiquei manso como um cordeiro. Consegui reencarnar penosamente às sete e meia, sem recordar as razões que me haviam levado ali.

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Da Wikipedia:

Jorge Mario Varlotta Levrero (23 de enero de 1940, Montevideo - 30 de agosto de 2004, Ibídem), fue un escritor uruguayo, que además se desempeñó como fotógrafo, librero, guionista de cómics, columnista, humorista, y también creador de crucigramas y juegos de ingenio. Además, en sus últimos años de vida dirigió un taller literario.
Comenzó a publicar a fines de la década de los 60, en editoriales de Montevideo y Buenos Aires. La obra de Levrero se compone por partes casi iguales de novelas, en general de no mucha extensión, y recopilaciones de cuentos, muy variables en su tamaño. Hay una tercera zona —la de sus últimos libros—, a los que se les denomina novelas por comodidad, pero que son más bien un género propio, a caballo entre el ensayo, el relato y las memorias.
En el panorama de la literatura uruguaya contemporánea, Levrero surge como el último autor de culto del siglo XX. Su fama fue aumentando a partir de los años 80 pero, paradójicamente, siempre manteniendo un perfil muy bajo. Generó un creciente grupo de seguidores tanto en Uruguay como en Argentina pero nunca alcanzó grandes reconocimientos públicos, salvo una beca Guggenheim en el año 2000, que le permitió dedicarse a la redacción deLa novela luminosa. Este diario-relato y su antecesor El discurso vacío se consideran sus obras mayores, por su complejidad fabuladora.
Pero otros lectores prefieren, por su elaboración autónoma, sus novelas de la llamada trilogía involuntaria: La ciudad, París y El lugar. Las tres se centran en la urbe, están escritas en primera persona, eso sí como toda su narrativa, y describen una sensación de atrapamiento a modo del sueño (y del cine mudo) propio del sentimiento del "aislado" que evocan casi todos sus relatos. Y, en último término, libros de relatos inclasificables y de intensidad suma son La máquina de pensar en Gladys y Todo el tiempo.
El estilo literario de Levrero cae dentro de lo que una crítica de Ángel Rama denomina el grupo de "los raros", una corriente típicamente uruguaya de autores que no pueden encasillarse dentro de ninguna corriente reconocible, aunque tienden a una especie de surrealismo leve. Felisberto Hernández, Armonía Somers, José Pedro Díaz, y el propio Levrero son los nombres principales de esta corriente, aunque este último era bastante más joven que el resto, y los sobrevivió a todos. De los autores vivos, más jóvenes que Levrero, se incluirían Marosa di Giorgio o Felipe Polleri, que es el continuador que más se acerca a la categoría.
Dentro de la tradición uruguaya, Levrero es más asimilable a Felisberto Hernández que al resto de los "raros". De buscar referentes extranjeros a la literatura levreriana, salvo un cierto aire kafkiano que impregna la primera parte de su obra (desde La ciudad), sólo podría encontrársele parecidos con la obra de algunos de los surrealistas más atípicos, en particular Leonora Carrington.
Los autores del grupo de los "raros" tienen como característica ser “autocancelantes”, es decir que no han generado una corriente literaria de seguidores de su estilo, y cada uno es una singularidad dentro de su género. Sin embargo, en el caso de Levrero hay un amplio espectro de escritores más o menos jóvenes que se declaran deudores del estilo del maestro, pero en general se trata de alumnos de sus talleres, y son más deudores de su método de enseñanza que de su obra literaria.
Incluso dentro de ese grupo de escritores, Levrero es singular en su formación y estilo. Su literatura está fuertemente influenciada por la literatura popular (fue un ávido lector de novelas policiales, incluso en su variedad más floja), pero al mismo tiempo fue un estilista cuidadoso y minucioso, casi maniático.
Además, en su obra hay una fuerte vocación introspectiva que, viéndola en conjunto, da la idea de cierto tipo de escalada desde lo más narrativo hacia lo más cotidiano. El autor lo explica en una entrevista, diciendo que, inadvertidamente, a lo largo de tres décadas su literatura fue recorriendo el camino que va desde el inconsciente colectivo, reflejado en sus primeras novelas, pasando por el subconsciente hasta aflorar en la conciencia y permitirle describir lo que ocurre fuera de sí mismo


Porque demorei tanto para encarar "Searching For Sugar Man"

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Não assisti o documentário “Searching for Sugarman”, do sueco Malik Bendjelloul, em parte de birra. Eduardo Filipe foi o primeiro a me recomendar, e ao Sama se seguiram dezenas de amigos e clientes da Baratos, todos euforicamente entusiasmados com a obra do compositor e cantor Sixto Diaz Rodriguez, nascido em 1942 e filho de mexicanos que migraram para Detroit atrás de empregos na indústria automobilística. Birra porque de tanto me falarem a respeito eu fiquei com aquela sensação de que já tinha quase visto o filme.... ao invés de me pilharem, acabei “brochando”... Pois bem, acabo de corrigir esse erro, esta manhã mesmo.

Também confesso que desconfiei dos elogios hiperbólicos. Tenho a impressão de que nasceu nos últimos anos um filão no mercado fonográfico, que é o das reedições de obscuridades, e tenho a impressão de que os releases abusam da idéia de que “as grandes gravadoras são comprometidas com receitas fáceis e portanto nunca colocaram suas engrenagens a serviço da arte realmente ambiciosa ou ousada”. É claro que há algo de verdadeiro nessa afirmação: a maior parte do “maquinário” trabalha em prol dos “blockbusters”; mas eu amo a música pop (na acepção que ela teve nos anos 60 e 70, pelo menos) que nasceu do Rhythm & Blues, e reconheço no cânone do rock´n´roll mais nomes que merecem os louros colhidos do que factóides publicitários. Essa idéia, a de que “os verdadeiros heróis só são reconhecidos depois de mortos” (mesmo que no sentido figurado: valendo portanto pros casos de loucura, sarjeta, depressão etc), se alimenta não só dum certo chavão tipicamente esquerdista, mas também do hábito dos “fãs hardcore” de tirarem onda quando demonstram conhecer algo que seus amigos ignoram. Tira onda quem descobriu anos atrás o cara que só hoje, promovendo seu terceiro álbum, é a sensação do Coachella; e também tira onda quem diz preferir o Lucifer´s Friend ao Black Sabbath – pelo menos em certos círculos. E num tempo onde qualquer Zé Ruela tem 15 mil canções no seu i-pod, se destaque quem troca quantidade por qualidade, e elenca meia dúzia de nomes sobre os quais pode contar histórias que ninguém escutou ainda.


Voltando ao documentário vencedor do Oscar de 2013 (além de outros 32 prêmios, incluindo o Bafta e o Sundance):é maravilhoso. Malik Bendjelloul, que roterizou, dirigiu, montou e coproduziu o filme, é brilhante. Os travellings panorâmicos que fazem algumas passagens temporais são lindos, bem como o uso de desenhos sobrepostos sobre as paisagens urbanas, para dar o mesmo efeito. E o espectador atento notará que sua opção por uma estética sóbria e “proletária” (pobreza poética) não o impediu de recorrer a alguns poucos, mas muito bem colocados truques – como a inserção da voz do Rodriguez quando Sugar (o dono de uma loja de discos em Cape Town) rememora o telefone que recebeu no meio da madrugada, ou a animação que ilustra a chegada no aeroporto do cantor e sua filha para os primeiros shows na África do Sul.  Uma belíssima sequência é a que apresenta, pela primeira vez, Rodriguez na atualidade: abrindo a janela da sua casa simplória num subúrbio decadente, e corta, ele no interior, apenas parte do seu rosto iluminado pela luz que vem do jardim, quase toda a tela mergulhada nas sombras. Gestos discretos, longas pausas, a fala mansa e incluindo o diálogo preparatório, que normalmente seria cortado na montagem final.

Não tenho nada a dizer sobre a música do Sixto Rodriguez. Muitos meses atrás comprei a edição em CD do celebradíssimo “Cold Fact”, e me decepcionou um pouco. Pelo que havia ouvir dizer, aquele disco deveria mudar a minha vida. Topei depois com a trilha do documentário (uma compilação que talvez inclua uns out-takes, já que ele só gravou 2 discos nos anos 70), que me causou uma impressão muito melhor. É claro que vale a pena escutar sua música. Mas não antes de se escutar Leonard Cohen, Bob Dylan, Neil Young, Van Morrison, Tim Buckley, Cat Stevens ou James Taylor. Na real minha lista de audições obrigatoriamente prévias incluiria nomes como Jonathan Richman, Kris Kristofferson, Lee Hazelwood, Colin Blunstone  e mais uns tantos.  Na minha prateleira, Rodriguez está ao lado de Steve Tilston e Jesse Colin Young. E do mesmo quilate, naquela época, houve compositores espalhados por quase todo o planeta – como o turco Bülent Ortaçgil ou o israelense Arik Einstein. Se você gosta de folk e de pop barroco (porque as letras são emolduradas por arranjos eventualmente rebuscados, não se engane), certamente precisa ter o Rodriguez em sua coleção. Eu acabei com a reedição em vinil do “Cold Fact”, presente de meu amigo John Charalambides. Como podem ver, eu não pude escapar: o DVD foi presente da Dona Marisa, cliente que enche de mimos a equipe da Baratos.

O que gostaria de discutir aqui são outros aspectos do filme: a discrepância entre a narrativa e o indivíduo que é seu personagem principal, o mito romântico nas estrelinhas dessa narrativa e algumas questões do mercado fonográfico, em especial o comportamento do público consumidor.   


Voltemos à primeira entrevista com o Rodriguez, conduzida por Malik. A primeira pergunta é se o cantor tinha idéia do sucesso que sua música fez na África do Sul (não, ele responde), a segunda é se ele gostaria de ter sido um popstar de fato (Rodriguez diz não saber como responder), a terceira é sobre como ele se sustentou ao longo dessas décadas (trabalhando na construção civil) e a quarta pergunta, feita num tom que mescla indignação e surpresa, é se ele gostou de ser pedreiro. Sim, Rodriguez responde. E o diretor resmunga qualquer coisa... Malik não diz, mas as reticências me pareceram claras: um artista do patamar do Rodriguez não pode ser feliz sendo pedreiro! Pelo menos não segundo a opinião de seus fãs. Soa quase como uma violência do “sistema” contra o pobre do artista. Um ser nobre, dotado de uma alma que deve ser qualitativamente diversa da alma das pessoas comuns, não-artistas.

O mito romântico do artista atormentado, da sensibilidade privilegiada ameaçada pela brutalidade do mundo, é muito evidente no primeiro terço do filme, quando nada concreto é dito sobre Rodriguez, e desfilam os depoimentos de produtores, músicos e fãs sobre o impacto que a música teve em suas vidas, e eles especulam sobre como seria o artista na intimidade. Realmente acho difícil que as referências às drogas tenham sido forjadas única e exclusivamente pela imaginação de Rodriguez, mas tudo o mais pode ter sido apenas isso: a imaginação & observação combinadas com trabalho árduo de composição. Ninguém precisa dormir ao relento para escrever um poema sobre um mendigo, ou ser ex-combatente para escrever um bom roteiro a respeito da guerra. E todos os depoimentos no documentário são muito carinhosos, inclusive os dos amigos que não sabiam do seu envolvimento com a música. Todos o citam como um cara tranqüilo, bem humorado e até sábio. Conseguiu pagar a hipoteca, pagou pela faculdade das filhas - que estão sadias e bem encaminhadas profissionalmente -, é querido pelos colegas de trabalho, foi uma liderança do bairro e não demonstra qualquer rancor por ter sido ignorado pelas rádios. Não há uma história sequer sobre ter passado fome, dormido debaixo do viaduto, sido preso ou perdido algum amigo para a heroína. Passou perrengues de grana, mas até aí: quem não?


Mas lá pelo fim do filme, nas “falas finais” dos personagens que participaram com seu testemunho, há várias menções ao “sujeito que comeu o pão que o diabo amassou e deu a volta por cima”. Sobre a redenção que quem pôde, ainda que tarde, “voltar à posição que lhe é de direito” e que, mais importante, condiz com sua “verdadeira essência”. Isso está mais claramente colocado por uma das filhas de Rodriguez, que diz que seu pai “voltou a ser quem ele era de verdade” (quanto retoma a carreira musical). O mito romântico é mesmo sedutor.... E talvez seja porque o público, num nível talvez inconsciente, deseje se apropriar do artista. No fundo nós achamos que a vida do cara nos pertence! No fundo não gostaríamos que ele tivesse escolha! Se desse, o trancávamos numa mansão, mas o trancávamos! E dali ele só sairia para o palco. Perambular pelas ruas? Só no caso de alguém que precisa observar a vida comum assim de perto – e sob a cláusula de dar autógrafos! Só que não, né? O artista é só mais um cara, e ele pode não estar a fim de ser artista o tempo todo. Pode até ser um momento apenas. E muito breve até. E tem mais: às vezes o que ele tem para oferecer se esgota depois desse breve momento.

(Sou casado com uma professora e vejo esse mito romântico ser insistentemente usado contra o herói da história. No caso dos professores a identificação entre profissão e essência é usada para desqualificar as queixas da categoria sobre as condições de trabalho. Não importa quão malcriado seja o moleque, quão baixo seja o salário, “professores realmente vocacionados” deveriam ser capazes de “cumprir sua missão”, não importa a adversidade. Uma balela muito da perniciosa.)

Meu palpite: Rodriguez é um camarada de talentos múltiplos, que arriscou suas fichas na música, perdeu, e redirecionadas as energias para desafios mais prosaicos (mas não necessariamente mais fáceis, tipo a paternidade), protagonizou outros dramas, mais próximos da sua e da minha realidade. Curioso é que o documentário mantenha o tom épico ao tratar da vida “civil” de Rodriguez.Depois de ter sido o bardo dos marginalizados, ele se torna o ativista político e líder comunitário. (Lembre-se do bordão “think global, act local”.) Note que não estou acusando o filme de qualquer inverdade: há vários depoimentos sobre o quanto ele lia, Sixto obteve um bacharelado em filosofia, trabalhou num ramo fortemente sindicalizado e viveu sempre na mesma vizinhança. Natural que tenha feita algo como concorrer – sem sucesso - ao conselho municipal - eram 169 candidatos para 9 vagas. Esse admirável currículo poderia servir para ilustrar o caráter de Rodriguez: além de artista talentoso e pai exemplar, foi um cidadão zeloso e atuante. Mas o filme vai além quando descreve o comportamento ascético de Rodriguez durante sua primeira turnê na África do Sul, preferindo dormir no sofá ao invés de na super cama do mega hotel em que o hospedaram. (O que destoa dos testemunhos a respeito de certa vaidade do cantor: sempre aprumado, mesmo quando chegava no canteiro de obras para trabalhar.) E qual seria o problema se Rodriguez resolvesse desfrutar daqueles mimos? Rodar pela Cidade do Cabo de limusine com os cabelos ao vento e o som alto? Ficar de papo pro ar à beira da piscina, tomando um uísque? Não seria uma forra mais do que merecida?


Logo no início do filme o produtor Steve Rowland rememora o período em que trabalhou com Rodriguez e lamenta com imenso pesar que seus esforços artísticos tenham dado com os burros n´água. Se emociona pra valer quando mostra a simetria entre uma canção sobre um cara que perde o emprego às vésperas do Natal (última canção gravada para o seu segundo e derradeiro álbum de estúdio) e os acontecimentos na carreira do próprio compositor. Meu palpite é que o lamento de Steve diz respeito a todos os músicos com quem ele conviveu e que não colheram frutos à altura de seu talento. Certamente foram muitos. Provavelmente mais do que ele é capaz de listar.

Sabe qual é o verdadeiro problema?É que a música tem uma importância descomunal para as pessoas, mas ela é um ofício sujeito a regras e acidentes muito parecidos com a de todos os outros ofícios. No fim das contas é mais um negócio. E com a desvantagem de não ser um negócio imprescindível á sobrevivência humana. Tanto que há regimes políticos cruéis a ponto de suprimirem a música da vida – causando certamente muito sofrimento, mas sem matar ninguém de abstinência.

“Searching for Sugar Man” é um documentário absolutamente encantador. Desafio qualquer um a assistir sem derrubar lágrima alguma. Ou sem ser arrebatado de simpatia por Sixto Rodriguez. É impossível. Mas, a meu ver, sabe qual é o lance mais cativante de toda a película? A paixão e a dedicação dos fãs de Rodriguez.


Muita gente diz amar isso ou aquilo. Mas muito pouca gente dedica realmente energia e tempo a essas coisas que sejam condizentes com suas declarações de amor. A maioria das pessoas é bem mais apática do que gostaria de admitir. A galera gosta é de rotina, ou é simplesmente preguiçosa. O cara sobe na mesa do bar aos berros para reclamar dos políticos safados, mas pede pro cara trocar a pelada de domingo por uma passeata e veja como ele reage. E aí o filme te apresenta um cara que passa 3 anos investigando o que aconteceu com um de seus ídolos de juventude, gastando uma baita grana para atravessar oceanos, virando produtor de uma turnê e de repente até trocando de armas e virando dono de loja de discos. E não é apenas um cara, são dezenas de excêntricos apaixonados por um punhado de canções antigas!

E tirar as pessoas desse estado de apatia é muito mais difícil que fazê-las se interessar pela música de Rodriguez. Acidentalmente eu acabei fazendo um teste: o segundo depoimento do filme é do guitarrista, arranjador e produtor Dennis Coffey. Por coincidência me lembrei de ter um LP do cara aqui na Baratos da Ribeiro: “Goin´ for myself”, de 1972 – lançado pela mesma gravadora que lançou “Cold Fact”, a Sussex, e também produzido por Mike Theodore. Está à venda faz uns 2 meses, eu recomendei trocentas vezes, para trocentos clientes, e ninguém deu bola. Continua na bancada. O documentário menciona todo um movimento musical inspirado na música de Rodriguez, o Vöelvry, e dessa turma de afrikaners anti-apartheid saíram os músicos que acompanharam Rodriguez nos shows de seu triunfal retorno. Me pergunto quantos espectadores depois procuraram no Soulseek ou no YouTube por Kooskombus, Willem Müller ou Johannes Kerkorrel.


O buraco é mesmo mais embaixo. Outra das melhores cenas do documentário é a entrevista com Clarence Avant, dono da Sussex e na época empresário de Rodriguez.É um dos poucos momentos do filme em que o diretor demonstra ter coragem além de competência. Um tipo de negão tão carrancudo quanto charmoso, falando naquele tom que intimida tanto quanto seduz, colocado na desconfortável posição de representante da indústria, tendo de explicar porque o artista não ganhou uma bolada depois de vender meio milhão de discos na África do Sul. Sua defesa é brilhante. Clarence tenta sair pela tangente, tenta segurar sua irritação, até que sai da marcação, avança para próximo da câmera (e do diretor, que está fora do quadro), apenas metade do seu rosto iluminado, e diz: “A Buddah Records quebrou. Eu também fiquei de fora do negócio. Acha que eles [os fãs sul-africanos] estão preocupados com isso? Eu sei que eles estão cagando.” (ah, esses tradutores de legenda, sempre tão polidos...).


Foi a Indústria Fonográfica que “matou” a carreira de Rodriguez em meados dos anos 70? Não. Sem dúvida seus contadores e marqueteiros poderiam ser mais competentes, e feito algum esforço para aproveitar melhor o auê que havia em torno do artista fora dos Estados Unidos. Steve M. Harris, da Teal Trutone Records (segunda gravadora a trabalhar os discos na África do Sul) diz que Rodriguez foi mais popular do que os Rolling Stones por lá. A gravadora poderia ter feito ainda mais dinheiro, e dado à César ao que é de César. Mas não faltam homens da indústria dando seu sincero testemunho de como gostavam do cara. Também não tenho dúvida de que teriam adorado trabalhar de novo com Rodriguez.

Então quem matou Rodriguez? Os fãs. Foram eles que fizeram circular os boatos sobre assassinato na prisão, suicídio com tiro na cabeça diante de uma platéia zombeteira ou auto-imolação por fogo. Por quê? Porque a “jornada do herói” romântico pede algo desse tipo.  E há algo perturbador no destaque que o diretor Malik Bendjelloul dá a esses boatos. É praticamente a informação que abre o filme. Um fã sul-africano dirige pela estrada à beira-mar escutando “Sugar Man” e fala desse compositor incrível, que todo mundo amava, e de como ele se matou. Malik foi encontrado morto em sua casa, em Estocolmo, no dia 13 de maio de 2014. Se Malik foi quem deu forma final ao mito do Sugar Man, é de se questionar o quanto de si esse artista projetou na obra do outro artista.


É do mito romântico que deriva a atual obsessão pelo aspecto biográfico da obra de arte.Se o artista se define por sua hipersensibilidade, que é algo inato, é mais importante que ele passe por “experiências iluminadoras” do que perca tempo estudando, por exemplo. E se a arte deve ser validada ideologicamente é melhor que o artista seja pobre, gay, louco, retirante, presidiário, índio o algum outro tipo de oprimido. Daí que os fãs de Rodriguez tenham lido a poesia de Rodriguez como uma espécie de autobiografia criptografada. Por que será que é tão difícil as pessoas aceitarem que para o fazer artístico basta a imaginação? Pode ser o fato de que imaginação todos temos. Malik Bendjelloul sofria de depressão. Mas uma decepção desse tipo pode ter tornado tudo mais difícil. E a quem duvide da afirmação que abre este parágrafo ofereço o caso de J.T. LeRoy. Trata-se do autor de “Maldito Coração”, romance adaptado para o cinema por Asia Argento em 2004. O livro, cujo título original é “The Heart is deceiful above all things”, foi lançado em 1999 por uma misteriosa figura andrógina que se esquivava da imprensa (mas comparecia aqui e ali). Ele – ou ela – teria nascido em 1980 e sofrido vários abusos sexuais e psicológicos durante a infância e adolescência. Suas narrativas perturbadoras seriam autobiográficas. Em janeiro de 2006 o New York Times revelou que a pessoa que se apresentava como J. T. LeRoy era na verdade a atriz e modelo Savannah Knoop, meia-irmã de Geoffrey Knoop, marido de Laura Albert: a verdadeira autora, que nunca passou por nada daquilo. O que não tira nenhum dos méritos literários que seus livros possam ter.  Ou pelo menos não deveria! (Em 22 de junho de 2007 o tribunal considerou Laura culpada de fraude contra a editora que publicou os livros.)


O mito é também inimigo da verdade. Malik é um cineasta estupendo, e devemos lamentar pelos filmes que ele faria se não tivesse entregado os pontos aos 36 anos. Mas não foi um bom documentarista, se considerarmos que a categoria exige uma dose de jornalismo investigativo. Logo depois de lançado em 1970, “Cold Fact” começou a tocar nas rádios australianas graças ao DJ Holger Brockman. O baterista do Midnight Oil, Rob Hirts, disse à revista Rolling Stones que todos os seus amigos tinham uma cópia – juntamente com o segundo álbum de Bruce Springsteen e o debut de Billy Joel, eram a trilha de toda festinha. No começo de 1979 rolou uma turnê de 15 datas. Sim, Rodriguez excursionou pela Austrália, acompanhado de suas 2 filhinhas! Tocou em Sidney para 15 mil pessoas, mesmo público que pagou para ver Rod Stewart algumas semanas antes. O fato está registrado num álbum ao vivo que foi lançado em 1981, pouco antes da sua segunda turnê na terra dos coalas. Rodriguez realmente teve de continuar trabalhando na construção civil, mas logo depois de visitar a África do Sul em 1998 se aposentou dos canteiros e passou a se dedicar integralmente à música. Na época da montagem do documentário, e muito antes de seu lançamento, ele já tinha uma agitada agenda de shows a cumprir. Por volta de 2013 já lotava casas de 18 mil lugares nos EUA.  A matéria que me forneceu essas informações está aqui:



Agora que me aproximo do fim deste artigo eu consigo entender melhor meu incômodo na época em que o documentário foi lançado, e que fez com que eu demorasse tanto para assisti-lo. Eu prefiro que as pessoas defendam a arte desse ou daquele artista sem que precisem explicar quem é o fulano. E por isso eu escutei primeiro o disco, e só depois encarei o filme. Eu acredito na autonomia da obra com relação ao autor, para colocar nos termos do meu amigo Zepka, cineasta formado pela PUC-RJ e estudante do Parque Lage. Muitos anos atrás eu me interessei pelo Proust, porque um amigo disse que foi o escritor que melhor descreveu como é estar apaixonado. E foi esse mesmo amigo, o Marcelo, quem me fez colocar Stendhal na lista de leituras futuras: quando comentou o quão precisos eram os mecanismos de ascensão social descritos em “O Vermelho e o Negro”. Já quanto à vida de Proust ou do Stendhal, eu nunca dei a mínima.  Me considero um fã ardoroso do David Bowie: acredito ter comprado tudo quanto é canção que ele já lançou na vida. Aí aquela exposição com os figurinos dele veio pra São Paulo, e os amigos todos buzinaram na minha orelha. Não vi. E não quero ver. Tudo de que preciso está na música dele.

Termino com uma sugestão. De que você fique atento aos vários Rodriguez que andam por aí. São muitos, por todo canto, inclusive no Rio de Janeiro. Não espere 40 anos, até que algum cineasta resolva entregar para você, embrulhadinho num lindo pacote. Chegue na frente! Tire onda! Já ouviu falar, por exemplo, do Paulo Bagunça & A Tropa Maldita? Pois bem, esse é contemporâneo do Rodriguez. Mas eis aqui mais meia dúzia de caras que vivem no Rio, tem trampos fora da música, e que gravaram, e continuam gravando, discos incríveis:

Fábio L. Caldeira (bandas Latéxxx e Imperfeitos)
Flávio Abbes (da banda Insone, mas procure pelo disco solo chamado “Pensamento Inconstante Flutuante)
João Gevaerd (liderou Os Supernaturais, agora tem o Cash Crash)
Paulo Vítor Grossi (foi da banda Alice e hoje tem a Io)
Pedro de Freitas Branco (banda White)
Vitor Bambino(sua identidade secreta: é alfaiate!)
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